5 de fevereiro de 2016

Quando eu li Afonso Henriques Neto

Boa parte das minhas referências são marcadas por bons e felizes encontros. Conheci a poesia do Afonso Henriques Neto por intermédio do editor Sérgio Cohn (Ed. Azougue) na Bienal do Livro do Ceará, em 2002. Em uma conversa, durante um sarau, ele me perguntou se conhecia o trabalho do Afonso e eu respondi que não. De imediato ele me deu de presente a antologia “Ser Infinitas Palavras” e logo saltei no fluxo daquele universo de curto circuitos e de palavras cortantes.

 

(...)
nos deitamos à beira de um córrego de transparência
total, vinho puro, lavoura do infinito, flutuação acima
da urina dos anjos, para que a eterna criança ainda se incline,
lábio à flor da música de um deus que arde  e vai passando.

Acredito que pensamos melhor diante de uma realidade não domesticada. E a poesia do Afonso é uma descarga de muitos volts – um soco que desmantela o corpo, um mal-estar na cabeça – é uma leitura que dá vertigens. Com o passar do tempo, ele se tornou pra mim um professor de assombros. E o poema “vento negro” é um bom exemplo da sua força poética:

 

eles virão dos subúrbios congelados
óleo expelido na música de corpos descascados
mágicas vermelhas vísceras e sementes
enterradas nos pespenhadeiros do sangue
rubis de furacões paralisados
nevroses e tempestades de adagas
tesudas coxas esquartejadas
vapores da loucura formigas desmapeando cidades
uma chuva sem termos uma comunhão
de verbos torturados
palavras do sonho nos altares sem memória.
eles virão nas paranoias transcendentes
arderão nos desfiladeiros de ferro e convulsão
as babas das vidrarias os sexos iridescentes
e as sinfonias serão arrancadas dos ossos
dos prédios onde hibernam as borboletas da treva
sentindo demolindo nos manequins do absurdo
imagens moídas nos computadores turvos
eles virão transbordados desirmanados
furacões de pesadelos tardos
sol por todos os poros a nos desinventar

 

Depois de um poema como esse, nada mais fica no lugar. A avalanche de imagens-delírio nos empurra para lugares impensados. Os pés são desenraizados do chão. Essa poesia, intensa e obscura, me mostrou a selvageria do verbo e a loucura lúcida que deve existir no cerne da pupila do poeta. E isso deve ser transformado, ao mesmo tempo, em uma ponta de lança e em um estado de espírito.

O tal livro me acompanhou por muito tempo, como uma experiência que adiciona bagagem ao corpo. Lia poemas em saraus, mostrava para os amigos, fazia cópias, etc. Carregava ele na mochila para todo lugar. Na época, estava muito interessado na poesia surrealista e em ter encontrado a leitura do Afonso Henriques Neto, naquele momento, foi importante para que eu tivesse compreendido melhor a experiência de profundidade com a linguagem. Então, fui aprender a envenenar as palavras e a cultivar imagens em abismos da carne.

Por fim, passados 12 anos, o Afonso fez a apresentação do meu último livro, Bifurcações (2014). Um atravessamento que perdurou por um longo tempo e ainda hoje ressoa no meu corpo, na minha memória e na minha escrita.