23 de setembro de 2021

Quando eu li Peter Handke

Trilhas em meio a uma densa floresta, estradas de terra abandonadas, caminhos que não levam a lugar algum, ou a todos os possíveis e imagináveis. Mansões, casas e casebres desabitados, ou repentinamente tomados pelo barulho e pela agitação, logo derrotados por um silêncio que ocupa cada canto. Lugares tão distantes e tão tranquilos que somente uma viagem, ou melhor, uma jornada nos faz chegar lá, ou simplesmente passar por lá, já que não paramos nunca. Ao longe e ao fundo intuímos que essa viagem é na verdade uma busca, uma “travessia”. Mas o quê ou quem procuramos? É nessa hora que eu acordava.

Durante alguns anos, eu fui visitado por um conhecido de muitos de nós. Eu falo do sonho recorrente, aquele que volta e meia nos procura à noite, às vezes some... por um determinado tempo, mas logo nos encontra pela madrugada adentro. Ao longo dos anos, enquanto sonhava, me perguntava, com um certo espanto e curiosidade, do porquê desse sonho. Dentre as infinitas e variadas histórias que meu cérebro poderia criar, por que essa? O prazer, a alegria e o conforto que o sonho trazia sempre que me visitava, vinham acompanhados de uma natural tristeza, fruto do estranhamento de entrar novamente em um mundo no qual eu não era feliz como era naquele paraíso noturno. Uma ou outra vez eu acordava com um gosto de lágrima na boca, e a lembrança dos caminhos, das florestas de árvores altas e das estradas que eu deixara quando o Sol nascia.

Por muito tempo, o mistério me inquietava, assim como o sonho me perseguia. Para uma pessoa como eu, que passou boa parte da infância na fazenda dos primos, mergulhando em poços e lagoas, perambulando o dia todo pelo mato e se escondendo em canaviais e plantações de mandioca, até que o sonho não era de todo infundado. Mas eu percebia que aquelas estradas, e aquela busca, eram outras. Não as da criança que ainda morava em mim.

Como quase tudo na vida, a vontade de entender esse sonho foi aos poucos desaparecendo, até chegar no ponto em que eu mal lembrava que um dia me preocupei com aquilo. Assim como essa vontade, o sonho também se foi, ficou sem dar notícias por muito tempo. E, foi assim, que o mistério se descortinou. Num dia como qualquer outro, eu passava os olhos pela minha estante de livros, procurando algo com que me entreter. Algum autor e algum mundo para habitar por aqueles dias. De repente meus olhos se fixam em uma lombada: A ausência Peter Handke. Pronto. Foi o suficiente. O meu sonho não era “meu”. Ele era uma história, mais precisamente um romance. Os locais, as sensações, alguns pequenos eventos, tudo isso eram as paisagens e cenas encontradas no livro, levemente diferentes, modificadas ao saber de um subconsciente que não me dá satisfação do que e como faz.

A ausência narra a história de quatro personagens que um dia se veem fazendo a mesma viagem no mesmo ônibus. Sem nenhuma combinação, sem se conhecerem, como que fruto de um acaso, eles andam por estradas, campos, cidades e florestas. Um romance curto, que pode ser lido em um dia, mas que não deixa o leitor nunca mais. O enredo é construído a partir de uma busca, e consequentemente de uma ausência. Os quatro personagens, cada um a seu modo, procuram algo, por que há algo que os falte. Mas o quê?

Quando eu li Peter Handke, percebi que existia um quinto personagem. Era eu. Assim como os outros quatro, eu também tinha uma busca. E um vazio dentro de mim. Aqueles caminhos descritos e picados pelo autor ao longo daquelas matas e vilas também eram os meus. Handke me pegou pela mão e me levou a uma jornada. O motor e o combustível eram o vazio que eu sentia em algum lugar dentro do peito, que as vezes descia para o intestino ou subia para a parte de trás da cabeça. Esse vazio é a ausência. Nunca o título de um livro fez tanto sentido para mim. O vazio ainda existe aqui. Talvez ele nunca vá embora, mas eu já me acostumei.

Por essa declaração de amor feita acima, fica claro o quanto esse livro significou para mim enquanto leitor, mas principalmente enquanto ser humano. A primeira vez em que li a obra, há uns nove anos, já percebi que ela ocuparia um lugar especial em minha existência. Logo entrou para aquela famosa lista de “favoritos da vida” que todos nós, amantes da literatura, criamos e atualizamos com o correr dos anos. Mas, foi somente com o tempo que pude, de fato, compreender a verdadeira dimensão que essa curta narrativa assumiria em minha vida. Depois de alguns anos da primeira leitura, reencontrei o autor e a obra. Desde então, se seguiram algumas releituras. Hoje, é praticamente um ritual. Uma vez ao ano me encontro com Handke e meus outros quatro companheiros, me jogo por aqueles caminhos e continuo minha busca. O vazio? Esse continua lá, nas páginas... e aqui comigo também.

Quanto ao sonho, nunca mais o tive. Talvez não seja mais do tipo recorrente, mas de um outro, o da categoria dos raros, que só aparecem de década em década. Assim espero, não quero perder por completo um sonho tão bom.

Essa é a história de quando eu li Peter Handke, ou melhor, de quando sonhei Peter Handke.

Gustavo Castanheira