26 de agosto de 2016

Quando eu li Milan Kundera

Quando li Milan Kundera pela primeira vez, eu estava perto de completar trinta anos e era professora no curso de História de uma cidade do interior. Comecei pelo livro mais óbvio: A insustentável leveza do ser. Havia ouvido falar que era um romance histórico sobre a Primavera de Praga e a tomada dos tanques russos. Na verdade, não é nada disso isso, embora esse fundo histórico seja parte do enredo. É um romance sobre o acaso e o destino. Afinal, seria a existência resultado de um conjunto de aleatoriedades ou ela viria carregada de um sentido prévio, que determina que “as coisas têm que ser assim”? Quanto mais nos distanciamos da última alternativa, mais leves nos tornamos. Porém, não podemos nos afastar demais ou a leveza se torna insuportável. É desse conflito entre o acaso e o “tem que ser assim” que Kundera fala ao contar a história de Tomaz, Teresa, Sabina e Franz. Eu havia procurado este best-seller para encontrar, na literatura, algo que pudesse dar sentido à História (assim, com H maiúsculo).  No entanto, após terminar a leitura, esse sentido mostrou-se cada vez mais inalcançável. Mais do que isso, alcançá-lo deixou de ser importante.

Foi inevitável ir atrás de seus outros livros. Cheguei até O livro do riso e do esquecimento, uma narrativa maravilhosa; A brincadeira e A vida está em outro lugar, que Kundera originalmente queria que se chamasse “A idade lírica”. A valsa dos adeuses é o romance de que mais gostei. Num enredo musical, conta a história de Ruzena, moça que mora próximo a uma estação de águas onde mulheres inférteis vêm de todos os cantos para se banhar em busca da fecundidade. Escrito antes de A insustentável leveza do ser, é a afirmação plena da aleatoriedade da vida e de como o total acaso a que estamos entregues cria situações irônicas, muitas vezes, cômicas.

Depois, li os ensaios que ele escreveu sobre a arte do romance. Foi quando entendi, profundamente, que a literatura não se presta, nunca se prestará, a ser um “valete dos historiadores” ou de quem quer que seja. A leitura desse escritor tcheco radicado na França foi importante para a minha formação como historiadora e mais importante ainda no processo criativo dos textos de ficção que eu já vinha escrevendo há alguns anos. A partir dela, eu me senti livre para escrever, porque compreendi que valores morais, ideários políticos e sociais podem fazer parte da minha vida, mas a literatura que faço não assina, nem deve assinar, ficha de filiação a nenhum deles. “A moral do romance é não ter moral nenhuma. É desvelar o mundo em sua ambiguidade”. Essa sentença profundamente humana e perigosa passou a estar presente em toda a literatura que escrevi a partir de então.

Betzaida Mata é escritora, professora de história e mãe de quatro meninos. Possui crônicas e contos publicados em revistas literárias. Publicou, em 2015, o romance “O fundo e a luz”, que recebeu uma menção honrosa nos Prêmios Literários Cidade de Recife, em 2010.