16 de outubro de 2015

Quando eu li Juan Rulfo

A viagem parecia curta. Já fazia algum tempo que um amigo sugeriu em uma conversa aquele nome estranho, meu cérebro dava nós incríveis quando escutava alguém pronunciar algo em espanhol, me perguntava se era possível mesmo seis diferentes sons para um mesmo “r”, primeiro pronunciou Pedro Páramo, imediatamente considerei se tratar de um autor irrelevante, depois me explicou que esse era o nome de um dos maiores romances da história, balancei a cabeça com certa descrença. O autor era o mexicano Juan Rulfo, era evidente que ambos os nomes soavam como boa ficção. Dizem que somos afetados por bons encontros, tinha sido invadida pela vaga ideia de um dia conhecer o universo que tais nomes encerravam.

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Anos depois, encomendei o livro. A viagem parecia curta, um pouco mais de cem páginas, confesso que fiquei um pouco decepcionada, esperava um calhamaço, dos tipos que ficam em pé na estante e não perdemos no meio de outros livros. Contudo, a vantagem é que poderia abrir o livro, lê-lo em algumas horas e contestar que nem de longe se tratava de um dos maiores livros da literatura universal, há certa teimosia e ceticismo em mim.

Sentei na cama e abri o livro. E não foi preciso chegar ao segundo parágrafo para eu ter certeza que, às vezes, alguns encontros são imprescindíveis: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe que disse. E eu prometi que viria vê-lo quando ela morresse. (...) Então, não pude fazer nada a não ser dizer que o faria, e de tanto dizer continuei dizendo, mesmo depois que minhas mãos tiveram trabalho para se safar das suas mãos mortas.”

Na minha ignorância cartográfica, quando terminei de ler o romance, não sabia onde ficavam aqueles povoados, aqueles nomes, eles existiam? Se não existiam, com certeza, eram reais, de uma realidade inesgotável. Nunca estive no México, entretanto, depois de Juan Rulfo posso dizer que penetrei na alma de todos os mexicanos, comunguei com suas tragédias. Nenhum autor sai ileso da leitura de Pedro Páramo, toda a minha literatura foi questionada depois de ter aberto esse livro.

Descobri que não eram necessárias palavras bonitas, neologismos, também não era preciso dragões ou cobras emplumadas para alcançar o fantástico. O fantástico de Juan Rulfo se originava da própria condição mítica, absurda do homem. E não eram apenas os homens de carne e osso que eram retratados, mas a angústia dos homens mortos, desses seres imateriais, dessas almas penadas, que vagam sem tempo nem espaço.

Nunca estive no México, no entanto, dormi com todos os homens de Comala. Nunca estive no México, porém, enterrei todos os homens de Comala. Nunca estive no México, mas jamais parti de Comala. A viagem parecia curta.

 

* Márcia Barbieri é paulista, formada em Letras (UNESP) e mestre em Filosofia (UNIFESP). Tem textos publicados em várias antologias e nas principais revistas literárias brasileiras. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno e As mãos mirradas de Deus, os romances Mosaico de rancores (no Brasil pela Terracota e na Alemanha pela Clandestino Publikationen), e A Puta. É uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro.