23 de junho de 2015

Tarde - Leitura de "Ocaso do século", de Wislawa Zsymborska

A capa do livro já havia flertado comigo. A mulher que me olhava, com o cigarro em riste, parecia me desafiar. Ela parecia me dizer: "Leia-me ou desista". Cedi, após um encontro entre amigos que acabaram por fazer a leitura de alguns dos seus poemas. No outro dia, com sede, fui até a livraria.

Momentos depois, Wislawa dizia pra mim que não somos nada mais do que perguntas ingênuas e que não sabemos de nada. Nada. Simplesmente nada.

Foi isso que me fez acreditar em sua poesia. Parecia que dizia a mim que eu deveria repensar. E a poesia que faz isso merece um lugar no peito, na mente, no coração. Szymborska veio e ficou.

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Ocaso do século

Era para ter sido melhor que os outros o nosso século XX.
Agora já não tem mais jeito,
os anos estão contados,
os passos vacilantes,
a respiração curta.

Coisas demais aconteceram,
que não eram para acontecer,
e o que era para ter sido
não foi.

Era para se chegar à primavera
e à felicidade, entre outras coisas.

Era para o medo deixar os vales e as montanhas.
Era  para a verdade atingir o objetivo
mais depressa que a mentira.

Era para já não mais ocorrerem
algumas desgraças:
a guerra por exemplo,
e a fome e assim por diante.

Era para ter sido levada sério
a fraqueza dos indefesos,
a confiança e similares.

Quem quis se alegrar com o mundo
depara com uma tarefa
de execução impossível.

A burrice não é cômica.
A sabedoria não é alegre.
A esperança
já não é aquela bela jovem
et cetera, infelizmente.

Era para Deus finalmente crer no homem
bom e forte
mas bom e forte
são ainda duas pessoas.

Como viver - me perguntou alguém numa carta,
a quem eu pretendia fazer
a mesma pergunta.

De novo e como sempre,
como se vê acima,
não há perguntas mais urgentes
do que as perguntas ingênuas.

Wislawa Szymborska
Tradução de Regina Przybycien

(in Poemas, Companhia das Letras, 2014, p. 75)