23 de julho de 2015

Tarde - Leitura poética de Do amor contente e muito descontente - IV, de Hilda Hilst

É engraçado quando forçamos a mente para que se lembre de algo que nos é caro, e ao final não conseguimos. Acabamos por inventar, quase sempre, uma história bonita de como tudo começou. Eu fiquei tentando relembrar quando li Hilda Hilst pela primeira vez. Fico buscando nas veredas da memória se alguém me apresentou algum de seus livros ou se ela foi mais um daqueles autores que a prateleira faz brilhar aos nossos olhos.

Sem conseguir chegar a origem de tal encontro, o que me resta é possuir Hilda, assim ao meu lado, sempre com uma distância máxima de um braço. Deitado, eu a busco, a envolvo, e no final da leitura sorrio e fico querendo lê-la toda, como um enamorado bobo, perdido.

Acho que Hilda é uma das poucas poetas que não consigo falar nada sobre sua poesia. Ela já fala o necessário. Só me cabe ouvi-la e sorrir.
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[Do amor contente e muito descontente - IV]

Falemos do amor, senhores,
Sem rodeios.
[Assim como quem fala
Dos inúmeros roteiros
De um passeio].
Tens amado? Claro.
Olhos e tato
Ou assim como tu és
Neste momento exato.
Frio, lúcido, compacto
Como me lês
Ou frágil e inexato
Como te vês.
Falemos do amor
Que é o que preocupa
Às gentes.
Anseio, perdição, paixão,
Tormento, tudo isso
Meus senhores
Vem de dentro.
E de dentro vem também
A náusea. E o desalento.
Amas o pássaro? O amor?
O cacto? Ou amas a mulher
De um amigo pacato.
Amas, te sentindo invasor
E sorrindo
Ou te sentindo invadido
E pedindo amor. (Sim?
Então não amas, meu senhor)
Mas falemos do amor
Que é o que preocupa
Às gentes: nasce de dentro
E nasce de repente.
Clamores e cuidados
Memórias e presença
Tudo isso tem raiz, senhor,
Na benquerença.
E é o amor ainda
A chama que consome
O peito dos heróis.
E é o amor, senhores,
Que enriquece, clarifica
E atormenta a vida.
E que se fale do amor
Tão sem rodeios
Assim como quem fala
Dos inúmeros roteiros
De um passeio.

Hilda Hilst