3 de abril de 2022

Escrever como quem viaja

Sempre pensei que a escrita é uma viagem

Quem me acompanha no instagram, sabe que estou construindo um itinerário do novo romance. Quando penso nos capítulos, desenho uma mapa mental da estrada e das coisas que encontro pelo caminho.

Eu sempre explico que esses insights não se tratam do romance em si, mas de coisas que sinto-leio-penso quando me concentro no ofício de escrever. Para mim, a escrita se faz de referências, do olhar sobre o outro e sobre o que já foi escrito.

Durante o período em que escrevi o “No útero não existe gravidade” (Penalux, 2021), um livro autoficcional, muito inspirado na minha própria história e memórias, um dos sentimentos que mais esteve presente foi o da falta. Curiosamente, foi em plena pandemia, então não viajei. Tive que me contentar com percorrer as estradas imaginárias dentro de mim.

Para que (ou quem) eu escrevia aquela história? Foi a pergunta das minhas noites insones. Muitas vezes, a dúvida cessava quando me deparava com outros textos que falavam sobre isso:

“Escrita, então, como movimento, como caminho para quem escreve e para quem lê. Caminho, migração de um lugar para o outro. [...] Quem migra, e toda escrita é migração, vai para uma fala que nunca lhe será dada. Dessa perda se forma o escrever. Falta, e não outra coisa, é o que temos no começo de cada projeto.”*

Me alimentei muito na escrita de outras mulheres para dar sentido a minha própria escrita. Para ter a sensação de não andar sozinha. Notei que algumas dessas referências que tanto me marcaram no último ano são feitas por escritoras pouco lidas ou conhecidas.

- Aglaja Vetranyi

Uma escritora romena morta precocemente que deixou um livro genial chamado Por que a criança cozinha na polenta que me atormenta sempre que releio;

- María Belén Aguirre

Poeta tucumana que com o Siamesas ganhou em 2020 o primeiro lugar no Fondo Nacional de las Artes, um dos maiores prêmios da Literatura argentina. Tive a honra de conhecê-la pessoalmente há dez anos quando morei em San Miguel de Tucuman e sua obra já me inspirava muito (inclusive um dos textos do meu livro é um diálogo direto com a obra dela);

- Olga Tokarczuk

Polonesa que ficou mais conhecida no Brasil por ter ganho o Nobel de Literatura em 2018 e cujo livro Correntes me atravessa todos os dias.

O que estas mulheres possuem em comum? São escritoras cujas obras beiram o insólito. Produziram obras que rompem com o gênero e cujos textos convergem também para uma busca de sentido. Também são autoras que, apesar de virem de realidades totalmente distintas da minha, conversaram comigo.

Eu, escritora

Essas leituras provocam também outras questões de cunho mais teórico. Eu, escritora, sou eu? Ou sou eu em diálogo com outras? É possível escrever totalmente sozinha?

Mesmo quando viajamos sozinhas, nosso caminho se faz com as pessoas que encontramos no caminho. Paramos nas estações, observamos a cara que a atendente faz quando escuta nosso destino. Entramos no ônibus, trocamos uma palavra com o motorista ou com a velhinha sorridente que senta ao nosso lado. Escutamos conversas entre casais em restaurantes na beira da estrada. Caminhamos ao lado de outras mulheres para nos sentirmos protegidas. Toda mulher sabe como andar só neste mundo é algo perigoso. Toda mulher tem uma história de horror para contar. Seja em uma viagem. Seja em um livro.

No meu novo romance, tenho dialogado muito com escritoras latinas: Mariana Enriquez, Samantha Schweblin, María Fernanda Ampuero, Verena Cavalcante, Anita Deak, Natércia Pontes, Sandra Cisneros, são algumas delas. Autoras que mesclam gêneros e vozes. Que falam do horror presente no cotidiano. Que criam a partir de imagens do sobrenatural e do invisível.

Cada momento de escrita pede diálogos distintos, portanto, referências distintas.

Toda viagem exige seu itinerário próprio.

Um livro novo pede um recomeço.

* ANDRUETTO, María Tereza. Por uma literatura sem adjetivos. trad. Carmem Cacciacarro. São Paulo: ed. Pulo do Gato, 2012. pp. 16-17.