5 de março de 2022

O que temos em comum com Clarice Lispector*

"Uma frase aleatória"
- Clarice Lispector

Em 2022 Clarice seria poeta de instagram?

Todo mundo conhece a piada sobre as inúmeras citações de internet atribuídas à Clarice Lispector. Curiosamente, em uma das cartas enviadas à irmã, Tania, Clarice comenta sobre um sonho em que as pessoas imputavam a ela frases cafonas que nunca teria escrito. No sonho, Clarice se desespera e tenta dizer às pessoas que as frases não eram dela. Sem sucesso.

Clarice tinha essa enorme preocupação com a qualidade do seu texto. Além de trazer temas instigantes, ela criava personagens que refletiam filosoficamente sobre suas questões. Mas em suas cartas, reclamava do pouco retorno financeiro de seus livros. Por isso, estava sempre em busca de trabalhos como jornalista para colocar feijão no prato. E pó de arroz na bolsa, pois vaidosa.

Foi assim que Clarice topou escrever colunas para as mulheres da classe média carioca. Entre dicas de beleza, etiqueta e receitas, ela arriscava citar algo mais profundo aqui e ali. Contrabandos.

Estes textos foram publicados originalmente sob pseudônimos. Clarice foi Tereza Quadros na coluna “Entre Mulheres”, no Jornal O Comício, em 1952; Helen Palmer na coluna “Feira de Utilidades”, no Correio da Manhã, em 1959; e, Ilka Soares, na coluna “Nossa Conversa”, no Diário da Noite, em 1960. Entre 2006 e 2008 os textos foram reunidos pela Editora Rocco em duas coletâneas: Correio para mulheres e Só para mulheres.

A romantização da dupla jornada

Há certa romantização na forma como esses livros foram promovidos. Como se escrever sobre como tirar manchas de mofo da roupa usando fubá de milho fosse o sonho de toda mulher. Mas apesar de esses textos não testemunharem contra a genialidade literária de Clarice, eles são uma mostra do quanto é difícil viver de literatura no Brasil.

Em um país onde a literatura, o trabalho intelectual e a produção artística são desvalorizados, escritoras excepcionais também ficam na m3rd4. Essa sociedade exige que a gente trabalhe para poder trabalhar. É exaustivo. Mas você não é menos maravilhosa por isso, colega escritora. 

Ter consciência dessa situação chama leitoras e leitores para uma responsabilidade: dar prioridade às editoras e escritoras independentes.

Os livros que você compra geram renda. Essa renda tem dois caminhos. Ela pode ir para os acionistas de um grande grupo editorial que não está nem aí para as condições de vida e trabalho de quem escreve. Ou pode ajudar a manter uma editora independente e uma escritora que está exausta.

Como professora de escrita e alguém que já fez inúmeros cursos, não canso de ouvir colegas dizendo que vão desistir porque não se enxergam como escritoras. Não se ver como escritora implica não só na má remuneração, mas em não ter tempo para escrever.

Nossa provocação hoje é para você, leitore:

você está a fim de pagar o drink caro do dono de uma grande editora ou fazer o corre da mana que escreve na periferia desse sistema?

 

*Este texto foi escrito em colaboração com a escritora Mari Mendes.

Mari Mendes é escritora, mãe e redatora para pagar os boletos. É autora do livro de contos Potências do Encontro, pela Editora Patuá, contemplado pelo Prêmio Sorocaba de Literatura em 2021. É colaboradora da Revista Livro & Café. Em 2022 lançará seu primeiro romance pela Editora Expressão Popular.