1 de fevereiro de 2022

Por onde começar a escrever

ou a importância da primeira linha em um texto literário

 

“Tudo no mundo começou com um sim”.

A hora da estrela, Clarice Lispector

 

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marquez

 

“Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio”.

Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo

 

“Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta”.

Shirley Jackson, A assombração da Casa da Colina

 

Assim se iniciam alguns dos meus livros preferidos.

Desde que comecei a ler sobre a arte de escrever, percebi que existem dois tipos de escritoras e escritores. As que dão grande importância para a primeira frase de uma obra e aquelas que não a consideram uma grande preocupação. Eu me coloco no primeiro time e acredito que a frase de abertura de um texto marca o tom e anuncia o que podemos esperar de uma obra.

Um texto que se inicia de forma desleixada produz um acufeno difícil de se livrar. Um ruído insistente que não permite concentração, impedindo assim que as leitoras e leitores se conectem com o texto.

Para mim, a primeira frase determina o caminho do texto, instala o dispositivo da narrativa, dá o tom. É na primeira frase que ouvimos a voz de quem narra. Essa voz precisa servir de contorno para o que virá, ainda que as melhores frases não sejam, necessariamente, premonitórias. “O que decide se um início é bom ou não é a energia com a qual a história começa a correr”, diz Elena Ferrante em Frantumaglia (p. 324).

A energia da primeira linha precisa ser  impulsionadora e fazer a leitora/leitor querer descobrir mais da história contada ali, como uma viajante que se perde e continua caminhando, seduzida pelas supressas do desconhecido. Escrever é como percorrer ruas de uma cidade nova sem um mapa que nos guie. É nos deixar surpreender com as esquinas, os bueiros, as sujeiras, os gatos que circulam com ratos presos aos dentes.

Uma boa primeira frase, é capaz de atiçar a leitora/leitor sem entregar de cara o que está por vir, ao contrário,  instiga a adentrar mais e mais o livro.

Para atingir esse objetivo, é importante que a leitura seja uma rotina na vida de quem escreve. Ler fará com que criemos um mapa topográfico de referências que comporão um itinerário criando familiaridade: “[...] escrever também é a história do que já lemos e do que estamos lendo”, ainda Elena Ferrante (Frantumaglia, p. 149). É importante também que a prática de escrever seja cotidiana, numa espécie de repetição enquanto ato de insistir.

Escrever até quando não há o que escrever.

Pensar a escrita como um itinerário faz com que a primeira frase seja o passo decisivo para a partida: escolher as roupas, fazer as malas, comprar as passagens.

Embarcar.

O objetivo não é saber para onde vai, mas encurtar as distâncias.

A escrita participa nessa atuação imaginativa e de repente, não só a primeira linha, mas um parágrafo, uma página, um capítulo, um livro inteiro se forma na sua frente.