26 de novembro de 2021

Os urubus sem penas, de Julio Ramón Ribeiro

Mal amanhece e os irmãos Efraín e Enrique vasculham as ruas e lixeiras da cidade em busca de restos de comida para alimentar Pascual, o imenso e voraz porco criado pelo avô.

A brutalidade da pobreza se soma a do velho. A voracidade da fome do porco se soma a da fúria do velho. E os garotos, brutalizados pela vida, fome e escassez, encontram apenas um no outro o afeto que os impedem de se brutalizarem.

Não é difícil encontrar Efraíns e Enriques em nossas ruas, ainda que sob o manto da invisibilidade trazida pela madrugada ou pelas indiferença. Contudo, o peruano Julio Ramón Ribeyro lhes empresta telento e palavras para fazê-los visíveis em Os urubus sem penas, conto que abre o livro homônimo que marcou a sua estreia na literatura.

Sobre o autor*

O peruano Julio Ramón Ribeyro nasceu em 1929 e ficou conhecido como o maior contista peruano e um dos maiores nomes da liteatura latino-americana, sobretudo entre os autores da chamada "geração de 1950", como destaca Marco Severo em seu texto de apresentação.

Seu reconhecimento enquanto contista não é sem propósito. Mesmo tendo escrito três romances, teatro, ensaios, biografia e aforismo, é no conto a sua maior realização (foram 87 contos) e reconhecimento.

Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura, com quem teve uma amizade estreita e conturbada, declarou que o considera "um contista magnífico, um dos melhores da América Latina e provavelmente da língua espanhola, injustamente não reconhecido como tal."

Sobre esse injusto não reconhecimento, Ribeyro chegou anotar em seu diário: "Escritor discreto, tímido, laborioso, honesto, exemplar, marginal, intimista, organizado, lúcido: estes são alguns dos adjetivos atribuídos a mim pela crítica. Ninguém jamais me chamou de grande escritor. Porque seguramente não sou um grande escritor."

Para Alfredo Bryce Enchenique, "os contos de Julio Ramón Ribeyro são prova palpável  de como é suspeito e perigoso juntar qualquer adjetivo à palavra literatura. [...] e não há dúvida de que o autor quer dar voz, pelo menos uma vez, àqueles personagens tão seus, expulsos do festim da vida, como numa condenação que, pateticamente, parece conter um alto grau de predestinação, ou pelo menos concordância tácita com uma realidade tão dolorosa e absurda quanto prévia e fatalmente estabelecida".

O que me fascina é a outra face da moeda: aquilo que deixei de fazer, Que não teve eco, que fracassou.

Como escrito em seu diário, não são os excluídos, em si, que atraem o olhar de Ribeyro, mas os fracassados, os que de algum modo cederam à "tentação do fracasso".

Se por um lado escreve com uma simplicidade gritante, por outro mergulha, aprofunda em seus dramas e dilemas. Não é o que se apresenta na superfície que o interessa. Suas obsessões cavam fundo na alma de suas personagens.

O reconhecimento tardio de sua obra não ofusca o seu talento e brilho (por exemplo, só começou a ganhar espaço apenas nos anos de 1970 em França e Espanha, por meio de editoras como Gallimard e Tusquets; e no Brasil a partir de 2016).

Descrito como tímido e de personalidade forte, devoto a obsessões singulares e vícios (em seu enterro, por exemplo, os amigos enchiam o caixão com vinho e cigarros), tem ocupado pouco a pouco seu lugar entre os grandes escritores latino-americanos.

Laura Janina Hosiasson afirma que o seu "evidente apreço pelas raízes do conto moderno, por Maupassant, pela escrita obsessiva de Flaubert ou Proust, mas também sua absoluta independência em relação aos modismos ao longo do século XX, certamente contribuíram para uma espécie de isolamento em que foi posto pelos editores e pela crítica que exaltou o boom".

Julio morreu em 1994, mesmo ano em que ganhou o prestiado Prêmio Juan Rulfo, no México.

Nos últimos anos, sua obra vem sendo reconhecida por meio de ensaios dedicados ao autor, bem como por novas publicações e traduções.

O autor no Brasil

Como era de se esperar face ao seu tardio e parco reconhecimento, sua obra segue escassa no Brasil.

Antes deste lançamento, foram apenas dois os títulos publicados por aqui: o inclassificável Prosas apátridas, com tradução de Gustavo Pacheco, e que integra a coleção Otra Lingua, lançado pela Rocco, em 2016; e Só para fumantes, uma coletânea organizada, traduzida e posfaciada pela professora Laura Janina Hosiasson, que conta com prefácio de Alfredo Bryce Enchenique, lançado em 2017, pela extinta Cosac Naify.

Os urubus sem penas

Os urubus sem penas foi originalmente publicado em 1955, e só agora, em 2021, chega aos leitores brasileiros numa belíssima edição da Editora Moinhos. O livro conta com a tradução cuidadosa e precisa de Silvia Massimini Felix, ou seja, sinônimo de ótima tradução. E ainda conta com um belo texto de apresentação do escritor Marco Severo.

Oito contos compõe o volume. A abertura fica por conta de Os urubus sem asas. Os irmãos Efraím e Enique percorrem a cidade pelas madrugadas, em busca de lavagem para o porco do avô.

A voracidade do apetite do animal confunde-se com a brutalidade e paranoia do avô que os obriga, mesmo diante de circuntâncias insalubres, a trazer mais e mais lavagem.

O contraste entre a escassez visível dos corpos equálidos dos irmãos e a opulência do barrão; o carinho e amor entre os irmãos e o desprezo e ódio dispensado pelo avô, compõem camadas que vão pondo em xeque o crescente sufocamento e culminam num desfecho catártico.

A voragem dos apetites, da ganância e do descaso vitimiza nalguma medida todos os que ali vivem.

A violência da pobreza revela outra face em Interior "L". Paulina, uma menina, vê-se grávida para desespero do pai que busca alguma reparação. As contradições e ironias que despontam ao longo da narrativa lhe conferem um humor melancólico, quase culpado, diante da impotência do pai.

Mar afora constrói com a cadência das remadas de Janampa o mistério que atrai Dionísio a uma armadilha. O pescador se encontra no meio do mar, sem chance fuga, enredado pelo desejo de vingança do outro. O fracasso de um constrasta com a felicidade do outro, tão incapaz de perceber as pistas e se deixando enredar pelo traidor.

Injustiça, fracasso e perda permeiam os contos seguintes. A gente miúda da cidade, habitando cortiços, trabalhando duro e em condições precárias, perdidos cada uma à sua maneira.

O desfecho fica por conta do ótimo Reunião de credores. Um comerciante, aflito ante as dívidas, reúne todos os seus credores em busca de algum acordo que o livre da falência. Contudo, sua maior preocupação não é com sua iminente queda ou retumbante fracasso, mas com a sua dignidade. Envergonha-se da mulher que o ouve atrás das cortinas, do filho que o humilha e o medo de que as filhas descubram a sua condição. Manter-se digno é o que importa e o impede de assumir a própria inaptidão, pois prefere acusar o seu concorrente que devorou a concorrência com seu grande magazine, a quem reduz a um esteriótipo, a assumir o próprio fracasso.

Julio Ramón Ribeyro tem o olhar atento ao secundário, ao periférico, ao marginal. Aprofunda-se em dilemas morais, tornando ainda mais inusitada  cada situação.

Tece uma crítica social sem dedicar-lhe uma única palavra, o faz apenas mostrando essa gente que ninguém enxerga, mas sem a qual nada funciona.

São crianças que disputam restos de comida com urubus, meninas grávidas pelo primeiro oportunista, pequenos comerciantes falidos ante a concorrência desleal do capital, pescadores cegos de ciúme, filhos perdidos, mãe e filho atormentados, uma jovem fugindo da violência doméstica.

Essa gente de todos os cantos e lugares, a quem se prefere esquecer. A ralé, o carvão que alimenta à máquina, verdadeiros urubus sem penas fuçando o lixo para encontrar o mínimo para viver, quiçá com alguma felicidade, mesmo que precária, ou alguma dignidade, mesmo que ilusória.

*Utilizei do texto de apresentação do escritor Marco Severo (presente na edição de Os urubus sem penas), do prefácio de Alfredo Bryce Encehnique e do posfácio de Laura Janina Hosiasson (presentes na edição de Só para fumantes).