24 de maio de 2021

Entrevista com Morgana Kretzmann

Morgana Kretzmann é escritora, autora do elogiado romance, "Ao pó", seu livro de estreia. Roteirista, atualmente trabalha em um novo projeto de série para uma plataforma de streaming. Editora da RevistaRia, a revista literária da Ria Livraria, que logo, torçamos, estará com suas portas reabertas. Atriz, atuou em diversos filmes, séries e peças de teatro, entre eles o curta-metragem, premiado nacional e internacionalmente, "A Pedra", que abriu o Festival de Gramado de 2018 junto com longa-metragem Bacurau. Trabalha atualmente na produção de dois novos romances policiais que se passam no interior profundo de um Brasil extremo ainda desconhecido.

Como foi o seu estudo para compor as personagens e a trama de Ao pó? Nos agradecimentos você menciona as mulheres anônimas que participaram de uma pesquisa. Cabe mencionar que o livro foi iniciado em 2014 e lançado em 2020. Parece ter acontecido muita pesquisa e elaboração até a sua estreia. 

Ao pó nasceu da vontade de contar uma história sobre fuga e também sobre busca de identidade. Como acontece com todo processo mais longo de criação de uma história, as mudanças vieram, no decorrer dos anos, o tema vingança foi ficando cada vez mais forte e isso teve muito a ver com as entrevistas e pesquisas que fiz. 

Sofia é uma personagem de ficção, mas conheci muitas Sofias, li muitas histórias de muitas Sofias nesses seis anos. Segundo dados do Ministério da Saúde de 2017, 7 em cada 10 crianças que sofreram crime de violência sexual, foram por estupro de repetição (quando é praticado reiteradamente com a mesma vítima). 87% dos abusos são cometidos por parentes ou pessoas próximas da família da vítima.

Apesar de ser um livro que fala sobre um assunto muito difícil e doloroso, um problema não só social, mas também de saúde e educação pública, não vejo o Ao pó com um livro panfletário, ou literatura que levanta bandeiras. É uma história, universal, para ser lida por mulheres, por homens, por LGBTQI+, por pessoas de qualquer estado do Brasil.    

Você traz um tema delicado, mas também urgente para ser discutido, que é o abuso infantil dentro da família e a violência contra a mulher perpetuada ao longo das gerações e espaços, inclusive entre o meio artístico. Em algum momento você se sentiu impelida a interromper essa história? Como conseguiu superar esses entraves?

Tive de abandonar a escrita muitas vezes (esse é um dos motivos por eu ter levado tanto tempo para escrever). Houve capítulos em que fiquei destroçada ao terminá-los. Tudo o que eu conseguia fazer era apenas deitar na cama e dormir. Além de escritora, roteirista, também sou atriz, crio personagens e histórias usando sempre uma forte carga de emoção, sentimento e empatia. Choro junto, rio junto, fico indignada junto. É uma catarse. Sei que certos escritores, professores e estudiosos acham isso totalmente errado, mas, sinceramente, não me importo com essas opiniões, sigo o conselho que recebi, não de uma, mas de algumas professoras e professores de artes cênicas: “não há o errado na arte”.

Estou trabalhando nesse momento em dois novos romances, “Água turvo” e “Safra de Sangue”. Novelas policiais que seguem meu projeto de narrativas ficcionais que se passam em pequenas cidades do interior profundo do Brasil. Histórias que falam sobre crimes e pactos de silêncios que são feitos nesses lugares, como acontece no Ao pó. Claro, são histórias diferentes, “Safra de Sangue” por exemplo, conta a história de uma espécie de Antígona (no livro ela se chama Mirtes) trabalhadora rural de uma desconhecida localidade agrícola nas profundezas do Brasil que decide ir até às últimas consequências para recuperar o couro cabeludo de uma criança morta para poder enterrá-la "inteira"

A narrativa é demarcada com os anos. Entre os capítulos datados, há capítulos curtos em itálico, ora sugerindo o onírico, ora a imaginação acordada. Como se Sofia estivesse tentando se compreender e se perdoar por algo que ela não tem culpa, mas os outros não cansam de culpá-la. Você pode comentar sobre essa escolha narrativa?

A narrativa se passa em três tempos e conta a história de Sofia na infância em Tenente Portela, depois adulta no Rio de Janeiro, numa tentativa de fuga do seu passado, de quem ela foi, do que ela viveu, e, por último, colocando seu plano de vingança em ação, passando pelas cidades de São Paulo, Belo Horizonte e Tenente Portela novamente. O que persegue Sofia em todas essas etapas são os pesadelos, que são os textos em itálico. É o eterno limbo que Sofia vive e está dentro dela. O seu passado, os abusos na infância, fazem parte dela e na trama, ela vai precisar enfrentar isso em algum momento. 

Me parece que seu romance mistura o drama com o suspense e o thriller. 

Apesar de tratar de um assunto pesado, o livro, e talvez por isso, tem uma prosa ágil e agradável. Os piores momentos são descritos com períodos e frases curtas e há muitas cenas bem construídas. Além da força que o romance tem por si só, você imagina o livro sendo adaptado para o cinema e o teatro? 

Gosto de contar essa história:  Ao Pó surgiu como ideia de um roteiro para o cinema num curso de especialização que fiz na PUC-RIO. O título na época era “Amores Deixados”. Mas logo percebi que essa história poderia virar um romance, então comecei a escrita e depois as várias reescritas. Foram seis versões. 

Logo que lancei o livro, atrizes me procuraram pedindo para adaptar para o teatro e também para um curta-metragem usando apenas um dos sonhos. Mas os projetos não foram para frente em função da pandemia. 

Acredito que Ao pó não é uma obra linear. O prólogo parece narrar um tempo interminável para Sofia e a sua irmã. No início do romance há uma quebra e no final, não é spoiler, a impressão é que não há um fim, mas um giro. Um recurso que você usou para organizar e situar quem lê é a progressão das redes: orkut, msn, facebook e whatsapp. Você concorda ou é viagem minha? 

A última versão do livro teve a preparação do escritor e professor Assis Brasil, ele me aconselhou a colocar os anos como títulos dos capítulos. Antes não tinha nem isso para ajudar o leitor a se situar no tempo da narrativa. Eu queria que o livro levasse o leitor a esse caos mental que também era o caos mental de Sofia. Mas entendi que estaria dificultando demais a vida de quem estava dando uma chance para uma nova autora. 

O poema, na última folha do livro, já no colofão, parece ser uma extensão do romance. Ou algo que corre ao seu lado. Fico na dúvida se ele não teria mais potência se fosse epígrafe, ou fizesse parte mesmo da obra. Ali no final, ele não fica meio tímido? 

Era pra ser só um colofão, mas os leitores passaram a entender como parte da obra, como a continuidade do não final da história de Sofia. Essa é a mágica da literatura, a mágica da arte. Você não tem controle sobre o que o leitor vai entender, ou como ele vai receber o seu trabalho. 

Morgana, muito obrigado pela conversa. Você quer comentar mais sobre seus projetos atuais de escrita e deixar um último recado para quem nos lê?

Como já disse, apesar de não ter editora ainda, estou trabalhando nesse momento em dois novos romances, “Água turvo”, um romance policial que tem como pano de fundo crimes ambientais. E “Safra de Sangue” que conta a história de uma espécie de Antígona trabalhadora rural de uma desconhecida localidade agrícola nas profundezas do Brasil, que decide ir até às últimas consequências para recuperar o couro cabeludo de uma criança morta para poder enterrá-la "inteira".

E como roteirista, estou escrevendo uma série internacional para um dos maiores canais de entretenimento. Logo, logo contarei os detalhes.