8 de julho de 2021

A poesia mineira de Valter Braga

Resenha e entrevista com o autor de Barragens & Rejeitos, lançado pela editora Quixote+Do

Valter Braga, natural de Sabinópolis, interior de Minas Gerais, é gestor cultural, escritor, poeta e compositor. Suas parcerias musicais já lhe renderam prêmios como Prêmio Visa de Compositores Brasileiros (2000) junto com Renato Motha, Festival Cultura pela TV Cultura de SP como melhor letrista.

Antes de iniciarmos esse papo, gostaria de apresentar ao nosso público as minhas impressões do seu livro Barragens & Rejeitos. São 137 páginas que nos carregam através da poesia para uma jornada roseana. Em seu primeiro livro, Valter experimenta as possibilidades que a música pode proporcionar nos versos poéticos, um casamento tão certo e feliz, pois o autor compreende os limites da letra e da poesia, onde a música por meio da rima entra para dar ritmo aos poemas.

Uma obra excelente para ser inserida no ambiente dos estudos da literatura brasileira, carregada de referências metalinguísticas, Valter também traz elementos da cultura popular, da sua mineiridade, apropria de neologismos que dão o tom da obra.

O título do livro me remeteu às tragédias vividas pelos mineiros, os desastres que acometeram pequenas comunidades às margens de grandes barragens que são os lixos de grandes mineradoras, Mariana e Brumadinho. Entre barragens e rejeitos de minério, encontramos muitos significados, existências que foram emudecidas. Sua poesia é uma ode que denuncia o grito que essas tragédias silenciaram, não é possível haver música no silêncio, na morte.

Os rejeitos revelam o embrutecimento da lama que com o passar tempo secam e concretizam a desumanização por trás das barragens.  Obra é dividida em quatro partes, ou partituras? Manhã de tudo revelam poemas da ambiência, insere o leitor no lugar-espaço, situa-o como se despertassem-no a atenção para as coisas. Em Inânima, segunda parte do conjunto poético, o próprio título traz o antagonismo da vida (do latim, animus), em que apresentam elementos inanimados. O barro, matéria bruta que o oleiro molda, a partir da água, do fogo e das mãos dão novo sentido a um elemento sem vida, cria uma unidade, o barro cru é invisível, quando se é moldado torna-se visível. O peso da lama das tragédias é um canto que Valter traz como um lamento, em que denuncia a invisibilidade dos rejeitos deixados pelas barragens.  Outro elemento dessa parte da obra, a pintura de paisagens como mesas e frutas inertes, deslocadas do seu lugar de origem, o ambiente natural, do seu habitat, são representações dos alimentos que sustentam um corpo e estão presentes naquelas pinturas clássicas que compõem uma sala de jantar, uma natureza que não existe, ela é morta.

A Rosa e o Buriti, terceira parte do livro é uma viagem ao sertão, resgata a linguagem Roseana e a paisagem presente em Grande Sertão: Veredas, nesse capítulo poético reconhecemos forças de raízes mineiras, é um capítulo de homenagem à Guimarães Rosa.

Refestelo significa prazer e felicidade, resgata memórias, tradições e a poesia cantada tal qual um cordel mineiro, em algumas páginas ao longo do livro a imagem de um guarda-chuva hindu, simboliza passagens auspiciosas (um Chatra), um acessório a proteção ao mau tempo. Seria o canto a invocação aos maus agouros da ganância mineiral? Eis que Valter traz em Barragens & Rejeitos leituras possíveis de suas letras e odes às montanhas que desmancham em lama.

Um papo com o autor Valter Braga

Quem é Valter Braga, de onde veio, para onde vai? Um poeta, um músico, um viajante, um aventureiro das letras? Nos conte um conto (um modo de falar para nos falar sobre algo) de você e sua trajetória até descobrirmos seu nome em Barragens & Rejeitos que a Quixote+Do teve a alegria de nos apresentar no mundo da poesia.

Posso dizer, sem dúvida, que sou um mineiro do interior, um mineiro que estudou música, fez os cursos de Letras e de Comunicação Social. Por outro lado, sem muita convicção, posso dizer que sou meio metido a músico, compositor, escritor, gestor cultural e por aí vai, e que não tenho a menor noção de estar indo ou não para algum lugar. Mas nem me importo muito com essas coisas. Com isso quero dizer também que tudo sempre foi muito fortuito em minha vida, especialmente quanto à arte. Sempre que eu quis seguir algum itinerário, a vida veio, implacável, e me conduziu para outros percursos, para outras orientações. Daí deixei de me perturbar com tendências, modismos, me libertei disso tudo, o que foi um grande achado para mim. Enquanto isso, compus minhas músicas – várias delas gravadas profissionalmente –, publiquei textos esparsos, trabalhei na área cultural, até chegar ao Barragens & Rejeitos.

Barragens & Rejeitos é seu primeiro livro de poesia, lançado pela Quixote+Do, como foi essa ideia de aliar música e poesia tal qual conhecemos o Cântico dos Cânticos, as cantigas medievais e diria até a narrativa homérica quando vemos nos poemas retratos de duas tragédias provocadas por barragens e lamas?

Sobre o Barragens & Rejeitos, o encaro como uma passagem de meu lado compositor musical para o poeta propriamente dito. Portanto, é de se esperar que algo da música ainda estivesse presente em minha escrita, como se fosse um resquício. Talvez até mais que um resquício, uma vez que, mesmo quando escrevo prosa, de alguma forma a música está sempre por ali, meio que martelando na cabeça. Penso que isso é um tanto patológico inclusive, o que faz com que eu tenha de me policiar às vezes, a fim de não deixar que os sons tomem conta de tudo. A respeito do elemento épico presente no livro, entendo que essa narrativa ocorreu mais por necessidade estética mesmo. Considerei que essa forma casaria melhor com a temática. Na verdade, eu não tenho preferências por escolas literárias, já fiz de tudo, inclusive poesia concreta. Talvez seja porque eu não pretenda romper com coisa alguma, especialmente um certo rompimento pelo rompimento. Dizendo de outra maneira, entendo que, se o tema exigir de mim determinada forma, é por aí que irei caminhar, sem titubear muito.

“Nem toda música precisa de rima, nem toda poesia é rimada”, mas você se arrisca em algumas formas tradicionais da poesia clássica como a sextilha, o metro, o ritmo e a rima, isso foi intencional ou foi a forma que você encontrou para aliar musicalidade à poesia?

Essa utilização foi intencional e nasceu principalmente por conta da terceira parte do livro, A Rosa e o Buriti, cujos poemas foram criados por encomenda, pelo maestro e arranjador Geraldo Vianna, com vistas a serem  transformados justamente num musical. Quando Vianna me passou o tema, que giraria sobre Guimarães Rosa – uma homenagem ao seu centenário de nascimento –, resolvemos partir de gêneros da cantoria de cordel, o que facilitaria na concepção das composições. Daí a utilização de toada, moirão, décima, quadrão, galope, parcela, sete-pés, martelo etc. E tanto esses gêneros quanto os textos intermediários, escritos em prosa, guardam aspectos estilísticos da obra de Guimarães Rosa, principalmente o neologismo. O musical, aliás, está em fase de pré-produção e deve ser lançado possivelmente no ano que vem, em espetáculo, CD e DVD.

Na obra, percebe-se muitas referências literárias, culturais e regionais, ao tentar amarrar esses três elementos nos textos poéticas, fale um pouco desse processo.

Sim, com certeza. Começando pelo elemento regional, era imperativo que houvesse esse tipo de referência, uma vez que as quatro partes do livro possuem essa temática ligada a Minas. Creio que isso tem muito a ver com a cidade de onde venho – Sabinópolis –, que possui uma tradição artística muito forte, ligada principalmente às festas religiosas. Tive a alegria também de ser influenciado diretamente por meu pai, que era músico nato (tocava qualquer instrumento em que colocava as mãos), e minha mãe, que escrevia seus versinhos, além de cantar muito bem. Isso tudo foi amplificado depois por meio de meus estudos, leituras e vivências, desembocando naturalmente no livro.

Nos conte um pouco sobre essas diferenças e similaridades de cada parte do livro dentro desse conjunto.


As quatro partes do livro foram escritas de forma independente, quase casual, e não nasceram na ordem em que se encontram na edição lançada pela Quixote+Do. A princípio, paradoxalmente, veio a última parte, Refestelo que foi inspirada na lenda de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a série de poemas foi criada como forma de homenagear os 90 anos de emancipação política de minha cidade, cuja principal festa popular é dedicada a essa santa. No ano seguinte, ao ser convidado pelo maestro e arranjador Geraldo Vianna para a composição dos poemas e textos de um musical com temática mineira, surgiu A Rosa e o Buriti, sobre o que já comentamos anteriormente. Foi por essa época que houve o desmoronamento da barragem de Mariana. Daí notei imediatamente uma similitude, uma espécie de correspondência quase espiritual com o que eu vinha escrevendo, o que fez surgir logo em seguida a primeira parte do livro, Manhã de Tudo. O pano de fundo desta série de poemas é o nascimento da província de Minas e os ideais da Conjuração Mineira, instigados pelo Iluminismo e pela Independência dos EUA. Nessa altura eu percebi que já tinha algo que podia ser transformado em obra impressa, cujas temáticas conversavam entre si. Mas eu ainda sentia falta de alguma coisa, do feitio da alma mineira, algo mais metafísico, simbólico, filosófico. Surgiu então Inânima (Prelúdio e suítes em natureza-morta), cujos textos buscam descrever poeticamente objetos inanimados, como em quadros de natureza-morta mesmo, conforme evidenciado no subtítulo. Este foi o último texto a ser escrito, o que fechou toda a concepção do livro.

Para fechar nosso papo, a última pergunta é também uma curiosidade. É comum vermos poemas que são escolhidos para serem títulos do livro, às vezes o poema que abre ou fecha a obra, então, porque Barragens e Rejeitos como título que remete de forma instigativa a uma crítica a um momento trágico que o povo mineiro vivenciou? E ao final você nos traz um capítulo com uma etimologia curiosa “Resfetelo” que significa felicidade, como se fosse uma mensagem final de esperança, porque não essa mensagem como título?


O título é uma alusão clara às barragens de rejeitos das mineradoras. A ideia, conforme falei, era traçar para mim mesmo uma espécie de roteiro, desde a fundação da capitania das Minas até o advento do rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho. Isso passou por mim mentalmente, e aí apareceu a vontade de escrever algo que evidenciasse que não só aquelas estruturas estavam desmoronando, mas todo um tempo, uma tradição, talvez algo de nós mesmos, num âmbito mais cultural, mais profundo. Dessa forma, é possível dizer que cada parte do livro pode ser entendida metaforicamente como uma barragem. E que, sim, a festa – ou o "refestelo" –, a alegria, a felicidade, assim como a herança, a história, tudo isso está acondicionado nessas barragens. Esses são os nossos verdadeiros rejeitos.

O livro de Valter Braga pode ser adquirido no site da editora Quixote+Do https://quixote-do.com.br/