6 de novembro de 2021

Entrevista com o premiado quadrinista Jefferson Costa

Jefferson Costa é paulista,  ilustrador, storyboarder, desenhista de personagens e cenários de animações, peças publicitárias, além de histórias em quadrinhos. Tem diversos trabalhos em parcerias que já lhe renderam o Troféu HQ Mix e o Jabuti em 2019. Desenhou A dama do Martinelli (Devir) com roteiro de Marcela Godoy, La Dansarina com o roteiro de Lillo Parra (Jupati Books), Jeremias: Pele e Jeremias: Alma (Graphic MSP/Panini Comics) ambas em parceria com Rafael Calça. Seu trabalho autoral como roteirista e desenhista foi a HQ Roseira, Medalha, Engenho e Outras histórias (Pipoca e Nanquim) e por último o seu mais recente trabalho em Anansi em parceria com Lucas Benetti  (Ed. Dos Autores) que traz uma narrativa da literatura infanto-juvenil.

Jefferson Costa Crédito: Jefferson Costa

Em seus trabalhos, nota-se fortes referências às tradições afro, além de fazerem parte da sua própria história, é inegável a importância de seu trabalho nesse âmbito, esse sempre foi o seu foco de atuação como quadrinista e ilustrador?

Na verdade não. Desde criança queria desenhar, trabalhar com isso… ou jogador de futebol, evidentemente. Na pré-adolescência e adolescência descobri que não era uma profissão acessível de verdade para alguém periférico como eu. Segui outros caminhos, estudando, me profissionalizando em área técnica. O sonho de criança passou a ser somente um hobby. Mas daí surgiu, aconteceu a Quanta Academia de Artes (fábrica de quadrinhos na época). Então a possibilidade surgiu, fazer o sonho de criança acontecer de fato e me dediquei a isso. Toda essa explicação de contexto pra dizer que pagar contas como desenho era esse objetivo inicial. E na época, o supra sumo seria trabalhar para Marvel, DC e tals. A percepção  de objetivos como profissional de desenho  muda quando entro em contato com o trabalho de Flavio Colin.

As duas graphics MSP Jeremias foram editadas sob a batuta de Sidney Gusman e Roseira, Medalha, Engenho com o trio de editores da Pipoca e Nanquim, como é trabalhar com duas editoras de perfis tão diferentes e como foi ser editado por cada um deles?

Particularmente pra mim foram experiências muito similares, por caminhos distintos,  e muito diferentes das minhas experiências anteriores com outras editoras, explico. O fator humano foi importantíssimo nessas relações. Sensibilidade de entender que esses livros em particular pediam a menor interferência editorial possível quanto a conteúdo, mensagem e caminhos narrativos.

Em qual de seus trabalhos em quadrinhos publicados até hoje você sentiu mais liberdade enquanto artista?

Sempre tive muita liberdade nas minhas parcerias, todas elas, tanto na arte e narrativa como também contribuir no roteiro, mas evidentemente foi em Roseira.

Você já teve alguma experiência de autopublicação? Ser editor do seu próprio trabalho?

Sim. Arcane Sally está no meio do caminho disso. A Dama do Martinelli de certa forma também pq o livro foi entregue pronto pra editora. Mas de forma mais objetiva, quanto à autopublicação, foi La Dansarina que sua primeira tiragem foi sim completamente independente.

Como você vê o mercado editorial dos quadrinhos hoje?

Nacional? Mais do que mercado ainda entendo principalmente como cenário produtor forte e independente. Mercado fraco ainda. Existe também um grande cenário consumidor de livros e hqs no brasil, porém são consumidores de produtos importados ou apenas turma da Mônica. Mercado será quando de fato existir uma ponte efetiva,  quando e se essa potencialidade criativa e produtora dos independentes estiver em contato real com esses consumidores potenciais.

Ser laureado com um dos maiores prêmios nacionais do mercado livreiro no país, o Jabuti, logo em sua 1ª edição na categoria de histórias em quadrinhos, representa um marco para a nona arte e qual o significado disso para a comunidade dos quadrinhos? 

Com Jeremias levamos  o prêmio em seu terceiro ano. Antes teve Castanha do Pará  e Angola Janga respectivamente. Mas sim, é sempre importante para os autores ter seu trabalho reconhecido, e todos os prêmios ajudam nisso, oportuniza o interesse nos livros. E para a nona arte fazer parte, estar presente em um prêmio literário aumenta a exposição e oportuniza a mudança e transformação do olhar preconceituoso que enfrenta.

Nos conte um pouco da sensação de ganhar o Jabuti na categoria que está há tão pouco tempo no prêmio e ser um dos pioneiros nessa premiação.  

A sensação é indescritível e acredito que elevada pelo caráter de exclusividade por ainda ser um pequeno espaço dentro desse prêmio… apenas um. Pois já é difícil reconhecer todos os grandes trabalhos produzidos com a especificidade e categorização existente no HQmix por exemplo.

Jeremias é o representante negro da Turma da Monica, como foi ser o escolhido pelo Sidney para desenhar essa releitura em conjunto com o Rafael Calça?

Indescritível! Nossa trajetória com Jeremias vem sendo indescritível do começo ao fim, rs. Ser escolhido, além de felicidade, trouxe ainda um senso  maior de compromisso com o tema e sobre os caminhos como autor.

Entre Jeremias Pele e Alma, uma história que começa de forma individual a partir de uma situação vivida pelo personagem e transita para uma mais ampla que cresce para um olhar mais coletivo, carregada de referências. Essas referências foram ideias que partiram de vocês dois ou do próprio editor?

Partiu da dupla. Sidão, como dito anteriormente, nos oportunizou fazermos o que precisávamos fazer.

O preconceito é uma marca, uma ferida aberta e presente nas duas graphics, e nessa toada da reflexão, do sensitivo que a coleção carrega. Como foi trabalhar essa abordagem de forma tão cuidadosa, de um tema que precisa ser cada vez mais discutido dia a dia, em todos os campos. Você trouxe nessas narrativas experiências próprias, de amigos(as), familiares e da própria história cultural, onde mais você buscou fontes para conseguir retratar em seus trabalhos esse assunto?

Olha, uma boa comparação para me explicar vem de uma frase que ouvi a uns 20 anos, não sei de quem é o crédito original da frase, mas ouvi do Octavio Cariello, depois de um desenho ricamente detalhado feito em 5 minutos por ele com caneta bic num papel sulfite. Alguém perguntou, “Como consegue fazer tudo isso, dessa forma em 5 min.?” A resposta: ”Não. Eu levei 40 anos e 5 min.”  Pessoas como eu vivenciam essas situações desde criança, e vivenciar é parte essencial aqui. Mas vivenciar não garante saber transmitir ou estar pronto para… até porque silenciamento faz parte dessa vivência.  Ainda assim, é necessário tempo. Talvez um ano antes eu não me sentiria pronto para esse livro, talvez. E se feito hoje ele provavelmente seria um tanto diferente.

Vamos falar um pouco de Roseira, Medalha, Engenho e Outras histórias que você assumiu o papel de roteirista e ilustrador. Nessa Graphic temos histórias que se assemelham aos contos da literatura. Esse vai e vem no tempo, são flashbacks das histórias orais, como foi essa construção da narrativa?

Na verdade, foi uma busca em tentar representar a sensação de lidar com memórias e lembranças, e a maior referência que me ajudou nessa construção foi audiovisual, Tarantino em Pulp Fiction, no sentido de uma narrativa que não segura o leitor pela mão durante o percurso. Onde a responsabilidade de remontar o tempo em uma ordem de eventos cabe ao leitor. A ideia me pareceu representar bem a sensação de confusão e falta de linearidade que uma memória pode ter.

Como os editores do Pipoca e Nanquim se envolveram no processo da sua obra, eles participaram da parte que envolve a narrativa e/ou a arte? Em que momento isso aconteceu?

Eles acreditaram muito no que eu tinha pra contar e como eu queria contar. Tanto o meu livro quanto o da Bianca e Greg, quadrinhos que abriram o selo, foram apostas na proposta narrativa dos autores. Total liberdade.

O selo original do PN se propõe a lançar trabalhos autorais, você foi convidado ou submeteu a proposta à editora, como foi esse processo?

Foi convite.  Eu estava com esse projeto contemplado pelo edital do Proac. Entrar em acordo com PN me oportunizou aprofundar a história, podendo desenvolver mais a narrativa dobrando o número de páginas previstas.

Em La Dansarina, você traz uma tocante história dentro de um contexto pandêmico vivido no ínicio do século 20, nos conte um pouco sobre essa HQ que nos remete tanto à pandemia atual.

É  o período da nossa história que mais se assemelha ao momento atual, incluindo um presidente irresponsável.  Um século depois e toda revolução tecnológica o despreparo  para lidar com algo do tipo é o mesmo. Além de apontamentos importantes, quanto comportamento humano e seu tempo, a história é principalmente sobre o inevitável nesse contexto. Despedidas inesperadas.

Para encerrar essa conversa, quais serão seus próximos projetos de quadrinhos e o que o nosso público pode esperar de novidade de seus trabalhos nas HQs?

Do que já posso falar, é a biografia em hq do músico nigeriano Fela Kuti, roteiro de Nathalia Thomaz, sigo fazendo a série vitoriana Arcane Sally, e por fim reeditando a parceria de La Dansarina com o Lillo logo mais chega Amantikir.

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