12 de fevereiro de 2020

As viagens do corpo e da imaginação

Minha condição passageira pelo mundo me impele a desejar constantemente desbravá-lo. Já era assim quando as minhas possibilidades de exploração eram limitadas ao quintal da casa dos meus pais. O menor movimento me fascinava. Eu gostava de acompanhar o vento farfalhando as folhas do pé de jambo, espalhando os estames das flores como se fossem centenas de agulhas de um avermelhado intenso por toda parte, ou a trajetória dos pássaros até que eu os perdesse de vista, sempre me perguntando para onde eles estavam indo, até o que, naquele tempo, era um dos grandes enigmas da vida: o trabalho intenso e coordenado das formigas carregando coisas sobre seus minúsculos corpos até um buraco que eu, intrigado, me perguntava aonde iria dar – e, claro, imaginava todo um mundo paralelo sob meus pés.

A noite também me enrodilhava em conjecturas: quando ia para a casa da minha avó, no interior, gostava de deitar na rede olhando a lua e as estrelas em mais profundo silêncio. E a estridulação dos grilos, que cantavam, incansáveis, para que eu dormisse? Um outro inseto que existia muito quando eu era criança eram os cachorros-de-areia, ou paquinhas, bichinhos minúsculos que cavavam o chão na tentativa de se esconder e, quando pegos na mão, faziam o mesmo movimento, dando pequenos beliscões que me provocavam cócegas e inevitáveis risos. E às vezes eu me via maravilhado com as lanternas oscilantes dos vaga-lumes que eu, imbuído de inocência, tentava capturar para que iluminassem meu quarto escuro, ignorando que, ao desejar a luz somente para mim, eu os privava daquilo que nasceram para fazer: iluminar onde lhes desse vontade.

O que sempre compreendi é que em tudo havia beleza, e eu viajava com a imaginação em busca do encantamento. Desse necessário à vida. Embora eu não soubesse disso, intuía. Naquele tempo eu começava a desbravar também o universo das fábulas, convivendo com plantas e animais falantes através dos livros ou LPs coloridos que eu ouvia com contações de histórias, o que só ajudava a colocar sob a lente de uma lupa a minha curiosidade pelas viagens possíveis: o microcosmo à minha volta. As narrativas que eu criava dentro de mim faziam com que eu me enredasse para o anseio de ir além das minhas fortalezas, e eu as ouvia. Uns dizem que minha obstinação desbravadora se dá por causa do signo, mas honestamente não faço ideia do que o horóscopo tem a ver com isso de verdade. Por tudo o que sei, há uma força que me leva na direção dos lugares do mundo, e meu desejo é tão amplo quantas são as possibilidades de percurso. Estar em trânsito me modifica, modifica meu olhar sobre quem sou, sobre as pessoas e o que me rodeia.

E também me deixa prenhe de ideias. Basta colocar o pé no mundo para que eu seja tomado por uma enxurrada de emoções que, decantadas pelos meus sentidos, se desdobram em situações narrativas para contos e crônicas que vão povoando páginas em branco. Viajar também significa arejar-se, e um corpo em movimento se torna mais propenso ao sentir.

E ao aprender.

Foi por conta da movimentação do corpo pelo mundo que descobri aquilo a que chamam de alma. Porque só quando nos humanizamos deixamos de ser apenas vísceras. Somos, então, uma coisa outra que entende a importância e a força do pensamento e das atitudes coletivas. Os lugares pelos quais você circula nunca são só seus. As ações que você tem nunca afetam apenas a você. Essa compreensão se dá ao nos depararmos com pessoas vivendo numa sociedade com comportamentos distintos dos nossos. Daí que quando você está numa cidade em que as ruas são estreitas, compreende que pode, sim, esperar menos de um minuto até que as pessoas no carro da frente desembarquem e retirem suas malas do bagageiro sem precisar fazer disso um pesadelo. Que bicicletas têm preferência sobre carros e ônibus. Que ser gentil nos deixa mais leves para enfrentar o dia e seus cansaços.

Lao Tseu afirmou que "o bom viajante não tem planos fixos e não tem a intenção de chegar". Tomando a frase apenas pelo que está dito, e não pela metáfora, eu sei que viajo para voltar, não para chegar de fato. Chegar parece significar algo estagnado, e por mais que a paz de espírito e o sossego sejam uma busca, não me apetece ser água parada, e sim rio que flui e descobre caminhos. Por isso que é muito bom chegar, mas fazendo planos para a próxima estação. Estar no mundo é uma dádiva, é reconhecer-se parte dele, malas prontas para abraçar o que vier, eu sou.