28 de setembro de 2023

Quando um personagem deve voltar?

Consta que em 1893, cansado do personagem Sherlock Holmes, que havia criado apenas seis anos antes e que, neste período, alcançara uma popularidade através de romances e contos incomparável a qualquer outro personagem literário até então, Conan Doyle, alegando que sua “energia literária não deveria ser direcionada demasiadamente para um único canal”, resolveu publicar um conto em que o famoso detetive caía de uma cachoeira durante uma luta corporal com seu maior inimigo. O que se seguiu a partir daí foi uma gritaria sem precedentes da população britânica. O jornal em que os contos de Doyle aparecia perdeu, de cara, vinte mil assinaturas, em protesto. Diz uma lenda urbana que quando os londrinos souberam que Conan Doyle havia matado Sherlock Holmes passaram a utilizar nas ruas uma braçadeira preta em sinal de luto. Ou seja: o rebuliço foi grande. 

Longe de mim querer fazer qualquer tipo de comparação, mas em 2019, depois de publicar o Se eu te amasse, estas são as coisas que eu te diria, um livro de contos que prezava por uma linguagem um pouco mais lírica, apesar dos temas não serem de fácil digestão, eu estava pronto para o próximo desafio. José Eduardo Agualusa diz que o melhor que se pode fazer ao terminar um livro é começar o seguinte, no que eu acho que ele tem razão; tanto assino embaixo e dou fé que em geral me dedico a dois projetos simultaneamente, até que em algum momento um deles “me escolhe” para tomar a dianteira e passa a ser, assim, o livro ao qual vou me dedicar com mais afinco até terminá-lo, quando então eu o deixo na gaveta e me dedico ao outro, que ficou mais para trás – e só depois de algumas semanas volto ao projeto finalizado quando, com algum distanciamento, consigo lê-lo com olho atentos ao que está funcionando e ao que não, começando aí um processo de escritura e reescritura tão trabalhoso quanto a própria escrita em si.

Fiel à minha ideia de me reinventar a cada livro, mas mantendo a minha essência, eu quis escrever uma história que vinha rondando a minha mente há alguns meses, desde que eu lera o romance Pssica, de Edyr August,o durante um solitário carnaval. A obra de Edyr, de poucas dezenas de páginas, traz uma personagem feminina forte, complexa, e a obra se mantém num ritmo alucinante sem abrir mão da qualidade literária. Pensei: Eu também quero fazer isso. E claro, não pude evitar a lembrança do frustrado Conan Doyle, que queria tanto escrever coisas diferentes mas o público só queria lê-lo se fosse alguma história com seu detetive da Baker Street. Eu entendo muito bem sua relação conturbada com seu próprio personagem, que bem ou mal seguiu aparecendo em contos e em alguns romances até 1927, três anos antes do próprio autor morrer, quando então livrou-se de Holmes para sempre. 

Tenho a sorte – e o privilégio – de poder escrever livros distintos entre si, sem seguir numa única direção ou pensando em chegar a um público de nicho, seja lá qual for. E sei que, se tivesse que ser diferente disso, eu não conseguiria me imaginar tendo um projeto literário, que dirá uma carreira. Por isso que, quando escolhi escrever a história de Cacilda, eu sabia que fazê-lo significava enveredar por caminhos inéditos para mim como escritor: seria minha primeira incursão numa história mais longa, num gênero igualmente novo, a novela, e sobretudo que trouxesse temas importantes sem ser didático, pelo contrário: eu queria escrever um romance curto que o leitor não conseguisse parar de ler, que devorasse cada palavra, que o fizesse esquecer do tempo, da consulta tão aguardada, de pegar o ônibus para ir ao trabalho, do prazo pra entregar um relatório. Em resumo: eu queria escrever literatura, mas que tivesse um nível de nitroglicerina que eu talvez jamais fosse repetir na minha carreira. 

Correndo o risco de parecer garboso, como diria o linguajar da minha avó, considerando o retorno dos leitores, parece que deu certo. Um dos nomes inventados para o amor foi publicado em 2020 e foi muito bem acolhido. Além de ser um dos personagens que meus leitores amam odiar, Cacilda também foi elogiada pela crítica – e sinceramente acho que seu ritmo frenético acaba por ser também cinematográfico. Livro publicado, distribuído, lido, resenhado, que segue encontrando leitores. Pronto, parecia que eu tinha cumprido o meu autodesafio.

Mas não foi bem assim.

Logo que o retorno de quem lia começou a chegar, também comecei a receber mensagens do tipo, Bem que você poderia escrever agora uns contos em que Cacilda aparecesse, não é? Refutei inicialmente, embora eu enxergasse potencial para que ela surgisse como coadjuvante, talvez, em enredos cujos entremeios pudessem ser alocados para momentos obscuros de sua vida no livro do qual ela é protagonista. Ocorre que o que eu queria mesmo era criar histórias novas. Eu achava que tinha dito o que precisava ser dito sobre ela e seus descaminhos. 

Durante os dois anos mais cruéis da pandemia, piorados pelas atitudes do presidente que estava no poder à época, eu praticamente não consegui escrever. Mas minha mente não parava. E Cacilda ia se impondo como uma presença constante.

Por esses dias e quase quatro anos depois, coloquei o ponto final em um romance que vinha escrevendo mais ou menos em silêncio. Cacilda está de volta e eu ainda não sei o que pensar. O desafio de escrever um romance que justifique o retorno de uma personagem e de uma tal forma que quem não leu a novela consiga fazer a leitura do romance sem (grandes) prejuízos é um esforço criativo descomunal, porque eu também não posso ignorar que 1) trata-se de uma continuação, afinal, estou contando o que houve com a personagem depois do que se pensava ter acontecido com ela ao final e 2) haverá leitor que já conhece a personagem, de modo que ela tem que estar, agora, numa versão expandida de si mesma, que mantenha o leitor interessado/a no que ainda há para ser dito sobre ela. Não pode haver lacunas, pelo menos lacunas não tão absurdas que o leitor não consiga sentir que pode, ele ou ela mesmo preencher sem problema, sob pena de colocar em risco tanto a história anterior como a atual. E claro, o óbvio ululante: a história seguinte precisa ir para algum lugar, é preciso criar pensando na relevância da existência da personagem que já se conhece para aquela nova história. Do contrário, que se escreva uma outra coisa. 

Neste momento o que sei é que Cacilda, que começou o primeiro livro decidida a comprar piranhas para assassinar o marido e começa o segundo livro (você acha mesmo que eu vou dizer?), seguirá na minha gaveta, pronta para vir ao mundo quando sua existência numa outra história esteja pronta o suficiente para se justificar colocá-la novamente diante do leitor. Enquanto isso Cacilda está lá, com o destino que teve na última página de seu livro anterior.