21 de junho de 2023

Tudo é luta

Para sair e entrar no dia, é preciso estar aberto a vivenciá-lo. 

Isso poderia ser uma frase de coach, mas não, é uma constatação, ainda que fazê-la tenha um custo.

Não se adentra onde quer que seja quando o que nos embarreira já começa de dentro. E no entanto, existem as dúvidas, o choro, o medo do sofrimento. Mas existe também o contra-ataque: fazer os enfrentamentos (eu tô coach demais nessa crônica, gente. Me segura!)

Repare: até a alegria requer embate. Outro dia um amigo disse a mim que só conseguia escrever suas histórias tristes se estivesse em constante digladiar com as vicissitudes dos dias, e que por estar vivendo um período feliz na vida afetiva, sentava-se diariamente diante do computador e conseguia produzir um total de vários nadas. Morreu dois anos depois da atestada felicidade, mas num período de vida do quão ele não podia se queixar, segundo ele mesmo.

Rubem Alves, o escritor, professor e filósofo, dizia que ostra feliz não faz pérola – deu até este título a um de seus livros. Esta nasce a partir de um grão de areia colocado sob severo ataque, até que surja o impetuoso – e valioso – objeto. 

Assim fica claro que ser feliz é também um inferno, porque luta constante para sua manutenção. Não há felicidade fácil, ou, se vier facilmente, não se mantém facilmente. É preciso muito esforço para manter a vida dentro de um ideal possível de alegria, qual seja: aquele onde o que nos atormenta seja menor do que aquilo que nos desassossega. O desassossego é inevitável, é o assombro de viver, e é algo bom porque traz consigo o potencial para a mudança. O que nos atormenta apenas retira de nós a sanidade mental, que já não anda tão fácil de ser mantida.

Italo Calvino também fala sobre esse inferno no final de As cidades invisíveis:

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”

Essa é uma perspectiva transformadora. 

Quantos de nós cedemos ao cansaço de ser e vamos levando uma vida acomodada, mais ou menos cientes de que “não há mesmo nada a ser feito a não ser se curvar diante do sistema”? É preciso disposição para a luta, o que a vida quer da gente é coragem, anuncia Guimarães Rosa em um dos trechos mais compartilhados de sua obra nas redes sociais. E é verdade. Mas é preciso mais do que coragem. Como afirma Calvino, é preciso tentar reconhecer tudo aquilo que não é inferno no meio do inferno para não ser devorado por ele. E como é difícil fazê-lo! Como é difícil, tomados pelas intempéries diárias, ter a sabedoria para identificar o que nos faz bem daquilo (ou de quem) que não, e conseguir resguardar do fogo esse conjunto de pequenas alegrias. 

Ainda que eu tema fazer a travessia sob o sol causticante, o farei sempre que for preciso fazê-lo. A bíblia fala que não se deve temer porque há uma companhia divina que andará comigo, com você, enquanto estivermos nesse durante. Belchior fala em sua pressa de viver (morreu aos 70) e em seu jeito de deixar a certeza de lado e arriscar tudo com paixão. Também não temia. Existem coisas pelas quais lutamos a vida inteira, e a vida em si mesma, embora finita, é um lutar infinito, infinitas vezes, até irmos daqui para um desconhecido onde não seremos nada ou parte do todo, jamais saberemos. E o que importa? Importa que a luta não será mais aqui. Disto aqui – não importa o quanto tenhamos sido amados ou não, bem-sucedidos ou não, metafisicamente realizados ou não – estaremos livres. Ainda que outra luta comece, em um outro lugar. E qual será nossa surpresa ao descobrirmos, neste outro lugar, que a luta continua? De minha parte, nenhuma, será um grande inventário de obviedades. Mas por enquanto eu prefiro acreditar que é só até aqui. Que a luta cesse e que venha o merecido descanso. 

Eterno, se possível. 

[“... e só tô triste hoje porque tô cansada. De modo geral eu sou alegre”] C. Lispector.