3 de abril de 2018

Entrevista com Roberto Menezes

Um demiurgo delirante

Roberto Menezes explica ao LiteraturaBR por que, de tempos em tempos, a personagem Maria o obriga a reescrever “Palavras que Devoram Lágrimas”

 

Maria iria rir da cara de quem ousasse fazer qualquer menção a Heráclito, mas a relação de Roberto Menezes com essa personagem (que retorna à sua obra, agora pela terceira vez) se dá num eterno devir: cada vez que ela volta, surge um livro inédito – ela aparece com o mesmo rosto, oculto por uma máscara diferente. “Palavras que Devoram Lágrimas” (Patuá, 2017) é este novo curso de um rio que começou a ser aberto por Menezes em 2012, numa publicação da obra onde ainda constava o título alternativo “A Felicidade Cangaceira”. Considerado “rebarbativo” pelo crítico Alfredo Monte, essa variante de batismo foi abandonada logo em seguinda, numa edição digital lançada pelo selo Latitudes. Agora, Maria volta a emergir num ano em que Menezes, além de retrabalhar o seu romance, dedicou-se a escrever a quatro mãos o livro “Conversas de Jardim”, que a editora Moinhos coloca nas prateleiras no ano que vem. De quem eram as outras duas mãos? Sim, de outra Maria: Maria Valéria Rezende, amiga pessoal do autor, com quem dividiu militância no Cube do Conto da Paraíba. Neste bate-papo em que, invariavelmente, as duas Marias se intrometeram, o autor fala sobre ambos os projetos e sobre política – política política e política literária também.

O caso de “Palavras...” me lembra um pouco o de “Sofia”, de Sidney Rocha, que a cada dez anos retorna à narrativa e trabalha um pouco mais nela, como que exumando os restos mortais e fazendo um frankenstein novo. O que leva um escritor como você, que certamente tem tantos partos novos a fazer, a botar o filho de volta no ventre e pari-lo de novo?

Rapaz, nem me fale. Ano passado eu estava num ritmo excelente escrevendo o meu romance novo quando precisei deixar pra lá voltar a reescrever este livro pela terceira vez (o terceiro retorno vem daí). Eu poderia tentar te explicar isso de diversas maneiras, mas vou ser bem sincero, voltar com Maria ao seu universo sempre está relacionado a um momento especial de minha vida. Nesta vez em especial, foi o momento de eu repensar alguns obsessões e objetivos que tenho, não só como escritor, mas também sobre a minha vida pessoal e profissional. Não tem data certa pra voltar. Não sei quando vai ser o quarto retorno, nem sei se ele vai vir a existir (kkk, a quem quero enganar). Mas uma certeza eu tenho, cada um desses é um livro inédito. O plot está lá, como um esqueleto, nada muda. Mas a gordura, a literatura, aí sim.

Lembro-me de que “Palavras...” tinha uma certa conotação política (Maria sendo ex-mulher de um vereador). Isso permanece nesta nova versão? Como foi trabalhar isso num cenário muito mais, digamos, efervescente, nesse sentido? E perdoe-me a questão tão batida mas necessária: pra ti, a literatura tem alguma função política?

Sim, permanece. Não tem como um escritor não absorver momentos e movimentos de sua atualidade e isso vai ser inevitavelmente ser refletido no que ele escreve. No mínimo, palavras que não existiam até a virada do século vão ser postas naturalmente num conto qualquer. A narrativa de maria está mais ácida nesse aspecto porém sempre de maneira sarcástica, sem fazer juízo de valor etc e tal, maria só quer ver a merda jogada no liquidificador.

A tua questão não é batida, é necessária, e é legal que posso me posicionar. Função política todos temos. Acredito que cada um faz a sua parte da maneira que achar conveniente e confortável. E que fique livre até pra não expressar nada no que escreve. Se alguém quiser escrever sobre borboletas de uma galáxia remota, se essas fábulas artrópodes não tiverem nenhuma segunda intenção, nenhuma mensagem escondida, nada pra agradar caçadores de porradas em luvas de pelicas, o que é que tem? Deixa a moça escrever, deixa o velho fazer o que mais lhe dar paz ou aflição. Caralho, já basta o resto das coisas empurrarem a gente pra onde a gente não quer ir. Deixa cada tarado com sua tara.

Eu da minha parte, sei o meu lado do fronte. Nunca dei um #ForaTemer no Facebook, por outro lado, de 2013 pra cá, nunca parei de conversar em sala de aula sobre as merdas que esse país está passando. No que escrevo, não é preocupação, mas vez ou outra vem algo legal pra falar, tipo esse conto, http://www.literaturabr.com/2016/03/10/cachorro-doido/.

Você está também pra lançar um livro em parceria com a Maria Valéria Rezende. Gostaria que você falasse um pouco mais do projeto, da relação de vocês dois e da posição que ela tem ocupado na literatura, hoje.

O livro “Conversas de Jardim”, que vai ser publicado pela Editora Moinhos, não nasceu de maneira programada. Visito Valéria regularmente. Teve um tempo em 2014 que eu corria de onde eu moro, do lado do MAG, até a casa dela, do lado do Shopping Sul. E pra descansar dessa corrida entre shoppings, batia na casa dela. Isso era quatro da tarde, mais ou menos. A gente conversava de tudo. Teve um dia que pedi pra gravar. Pronto. Horas e horas de conversa fiada (no tempo).

A gente só teve uma ideia de transformar o produto dessa conversa em do livro só agora no começo de 2017. A gente pensou, bora fazer uma brincadeira. Tipo, discordar do que a gente já tinha falado, reforçar, e naturalmente foi tomando uma estrutura de livro. A gente conseguiu por coisas legais como arcos narrativos em toda conversa, e algumas rimas narrativas também. Mas já vou avisando, quem for ler, não deve confiar no que a gente fala da nossa história, talvez seja invenção, talvez o tempo confundiu a gente na mão grande. Personagens. Simulacros. Até o que aconteceu de verdade, é pura ficção. Coficção. Escrito por quatro mãos confusas, tagarelas e hiperativas.

É um livro pra quem gosta de ler. Mas principalmente praquela pessoa que gosta de escrever. A gente divide nossa visão de mundo. E isso rebate sem sombras de dúvidas na maneira como a gente escrever e sobre o que a gente quer escrever. É um livro que queria ter lido quando eu tinha dezessete, dezoito anos e era mais perdido do que cego em tiroteio.

Você acha que ela deu uma maior visibilidade à literatura que está sendo produzida atualmente na Paraíba?

Rapa, com certeza, Valéria é uma força da natureza. Mas a essa visibilidade não teria sentido nenhum se aqui na Paraíba não tivesse escritoras e escritores que estão fazendo literatura com a faca nos dentes. A gente não é só a terra da poesia.

Teu texto é muito calcado na primeira pessoa, na voz de personagens (as mais recentes femininas). O que você pensa do lugar de fala, esse elemento que tem sido tão debatido pela crítica literária corrente? Já sentiu o desejo de dar um cavalo de pau nessa tua voz? Escrever de repente em terceira pessoa, com um outro narrador?

Rapaz, já pensei muito sobre isso, já não penso. Pra mim é um recurso. Essa balela de quem escreve em terceira pessoa é mais maduro é só isso, balela. Primeira, terceira, pra mim tanto faz, é pura ferramenta. Tem diferença? Sim, muita (e por coincidência tou quase texto sobre esse assunto), mas pra mim não vejo como dificuldade ou facilidade de escrever numa ou na outra. Rapaz, tenho dois romances prontos em terceira pessoa. Vou ver se publico em breve.

O livro sai pela Patuá, esse com Valéria pela Moinhos, e acho que não dá pra gente não falar aqui de literatura independente. Você acha, de maneira geral, que as editoras ditas independentes estão conseguindo de fato arejar o mercado literário ou apenas fomentando o início de uma cadeira fadada a se viciar também mais lá na frente.

Mercado literário é uma expressão meio complicada pra ser aplicada às editoras independentes. É claro que é preciso uma sobrevivência a longo prazo delas. Não sou editor pra falar mas acho que o formato livro-livraria não vai colar pras independentes. Redes de leitores. Boca a boca. É isso que faz que os livros das independentes sejam vendidos. Escritor camelô, igual a músico, compõe, grava, canta e vende. Não digo que é fácil. A gente vive de vícios. Prêmios como o Jabuti estão aí a milênios. Precisamos buscar outros formatos de méritos. Cada vez mais estou deixando de ver as independentes como trampolim pra uma editora comercial. Essa rede tem que ser perpendicular a esse conjunto já estabelecido. Mercado, o que é mercado? Livro = sei quantos reais? É sim, é isso, mas é mais que isso.

Lembra que falei lá em cima que voltei com Maria a esse terceiro retorno pra repensar certas coisas? Então, por essas repostas dá pra ver que este retorno pra algo serviu.

PS: Só deixa eu falar um negócio engraçado. Tou rindo aqui sozinho. Se maria visse esse parágrafo-lembrete, ia tirar onda da minha cara, ia dizer algo assim, “Beto, para de passar vergonha. Você acha que está arrasando com essa rima narrativa fajuta que você enfiou pra encerrar essa pabulação? Larga esses teus vícios bestas, boy”. Aí eu responderia pra ela, calma, maria, eu só queria, “Calma nada, não tenho paciência quando vocês escritores de jardim da infância, encantados em tuas grandiloquências, ficam nesses delírios de deus”.