10 de março de 2016

O Cachorro Doido

Não se sabe ao certo quem trouxe a notícia do cachorro doido pra essas bandas da cidade. Faz um tempo já. Era de tarde. Tava nublado e quente. As crianças faziam suas brincadeiras sem o incômodo das mães, que tavam mais preocupadas com os panos quase enxutos no varal, ou com que o líquido da leiteira não esborrasse.

Uns dizem que chegaram gritando, “o cachorro doido vem logo atrás, fujam! Fujam!!”. Outros asseguram uma chegada mais delicada, um emissário tímido foi ao pé do ouvido da velha das fofocas, “se eu fosse a senhora me resguardava, vem um cachorro doido logo atrás”. Os gritos do desconhecido ou os rápidos fuxicos da velha foram só o estopim que foi queimando de orelha a orelha até chegar aos sensíveis ouvidos maternos, e foi ali que a notícia explodiu. Danem-se panos quase enxutos, leite esborrado no fogão. “Já pra dentro! Pelo amor de Deus, já pra dentro!” Teve menina que deixou bicicleta pra trás, menino que esqueceu os carrinhos. Já pra dentro. Nem precisou dobrar, nem triplicar exclamações. Tinha um pavor sobre o já conhecido exagero daquelas mães. Cadeados atando correntes nos portões. Todos entraram. Giros e giros nas fechaduras. Família embaixo da cama, dentro do armário, atrás da cortina.

Não teve quem ousou ir às frestas da janela. Espreitar, contemplar a face da besta. Não teve quem ousou abrir as portas antes do novo amanhecer. Nessa noite, os homens não vieram pra casa. Os que sobreviveram foram os que não passaram pelo caminho do cão. Mentiu aquele que falou o contrário disso. Mentiu quem inventou brilho de fogo nos olhos de dragão. Baba fluorescente nos lábios de inferno. Garras de harpia em patas jurássicas. Mentiu quem assegurou a luta corporal com o cão, e que, por pouco, muito pouco, ele fugiu de seu até ali infalível punhal. Se alguém viu o cachorro doido, não voltou pra contar.

Não se sabia quando o cachorro doido iria passar por ali. Poderia já ter passado, mais provável que não. Se tivesse passado, teriam ouvido ladridos. E mesmo após os ladridos, era cautela não arriscar. Poderia estar rodeando o quarteirão, em sentinela, verificando o cumprimento do toque de recolher. Poderia estar na espreita, encolhido atrás de um arbusto. Ou disfarçado de bom moço, em pele de cordeiro, na esquina dos namorados. Poderia ter cansado do turno diurno comprido e buscado pernoite no armazém abandonado. Com tantas possibilidades, só o insensato meteria a cabeça pra fora. Só o insensato teve sono. Na noite em que surgiu o cachorro doido, teve reza, medo e a desconfiança do nunca mais.

Quando o sol despontou, a viatura da polícia circulou pela cidade. Por essas bandas, passou pela hora do almoço. Pro olhar esperançoso arremessado pelas mulheres das janelas, o sargento respondia negativo. A espera seria longa. Os maridos voltaram antes da nova noite. Trouxeram grades. Amarras mais fortes. Pistolas, carabinas de grosso calibre. Teve os que não voltaram. Se não lhes devorou o cachorro, lhes devoraram as amantes.

Correu o boato que um dos vizinhos tinha adotado o cachorro doido. Tinha lhe dado tranquilizante forte, amarras inquebráveis, focinheira pra não latir. Foram muitos boatos que surgiram vindos do telefone, rádio, televisão. Mas esse boato do vizinho era imediato. E o pior é que poderia ser qualquer um. Todos sob trancas, janelas de vidro trocadas por madeira de lei. Não dava pra saber. Se era o da direita ou o da esquerda ou o da frente ou de trás. Poderia ser aquele amigo de horas no telefone. Ou o desafeto que tinha lhe jurado de sangue quente, “vai ter troco”. Ambos levantavam riscos. Ao amigo do telefone, possível traidor, o corte de relações, o silêncio, o ele-não-tá. Ao desafeto, um cão de guarda foi trazido pra cada jardim. Não ao páreo do cachorro doido, mas ladravam sem parar. Diziam ao desafeto: “pra chegar ao meu dono, com suas pistolas e carabinas, tem que passar por mim”. No íntimo também sabiam que toda proteção era nula frente ao cachorro doido.

O verão chegou e ninguém foi à praia. Torraram dentro das casas. Veio o inverno e como o verão também se foi. As escolas fecharam. As crianças tinham aulas particulares com suas mães. Casais de namorados, impedidos de se encontrar, romperam ou se amancebaram. Com o estresse, poucas mulheres engravidavam. Os homens iam ao trabalho aos grupos e, vez ou outra, vinham faltando algum. Famílias passavam fome pela covardia de seus chefes em não mais saírem. O governo não tinha mais fundos. Bancos fecharam. A bolsa quebrou. Falaram que o caos que o cachorro doido causou não se limitava à cidade, à província, ao país, se alastrou pelo continente, pelo mundo. Falaram que em alguns países tava tendo êxodo de milhões pra terras mais seguras além das fronteiras. Falaram tanta coisa que por essas bandas da cidade, não se sabia até onde a verdade era verdadeira.

***

A menina que protagoniza a segunda parte desse texto nasceu depois da notícia do cachorro doido. Agora já é mocinha. E tudo que sabe do tempo antigo foi através do que ouviu dos seus pais. Pessimismo e saudosismo dos velhos, foi o que lhe ensinaram. “Alguém já viu o cachorro doido?”, perguntou a menina um dia desses. É claro que ela não foi a primeira pessoa a fazer essa pergunta, mas sempre foi fácil convencer. Mas a menina não crê. A menina não se convence. Essa fé, aprendeu nos livros antigos, é cegueira. E se os livros tiverem certos, ela quer perguntar a quem for preciso. Ela quer ir à praça, formar grupos, conversar com as amigas, flertar com os meninos, passar a noite toda lá se quiser. Sem medo, sem toque de recolher. Os mais velhos riem quando ela fala isso, “Com o tempo, ela vai aprender. Com o tempo, com o tempo”, riem mas não tão alto. Ninguém levanta a voz nesses tempos do cachorro doido.

O tempo pra menina é um rolo compressor. E seus planos que elaborou na surdina eclodem no dia que divulga a todos a sua manifestação. Convida todos os colegas virtuais. Liga pra rádio. Avisa o motivo. Informa a hora. Marca a data. “Estejam todos lá”.

Não tem pai, não tem mãe, não tem velho. Ninguém segura a menina.

E no dia marcado, ela levanta, come, se banha dos prantos da mãe, se enxuga com o desdém do pai, se veste com seu ideal e vai. Só, ruma pra praça. Não vêm os virtuais amigos que realmente nunca foram reais. Não vêm os ouvintes da rádio mais popular. Vai só. Pelas frestas das janelas as pessoas por esses lados da cidade veem quando ela chega. Faz tempo que alguém pisava na praça. Tanta coisa faz tanto tempo.

Meio dia. A mocinha fica plantada na praça. Coluna ereta. Respiração profunda. Ao seu lado só mato crescido e bichos que nunca ouviram a notícia do cachorro doido. Ela sorri ao ver isso. É o povo, não os bichos, a viver feito bicho, só porque alguém, gritando ou cochichando aos ouvidos, propagou um boato.

“O cachorro doido não atacou a menina”, é o que se ouve. Abrem à força os cadeados enferrujados. Retiram a madeira das janelas, deixam a luz e o ar entrar. Pessoas saem debaixo da cama, de dentro do armário, de trás das cortinas. Descarregam as pistolas e as carabinas. Domesticam os cães do jardim. A menina é só sorriso, um sorriso de ponta a ponta de satisfação. A praça tá florida. Nela tem só uma flor.

As crianças se banham, vestem roupa de festa. As mulheres domam os cabelos, vestem números do tempo de moça. Os homens se barbeiam, vestem terno. E a grande multidão sai das casas, não só dessas bandas de cá, mais de lá, de mais lá ainda, de mais lá ainda mais. Exército de paz, de um só general, a mocinha, flor da praça central.

O sol já se despede quando todos chegam. Fazem uma roda em torno da praça. A menina se prepara pra discursar. Poderia estar nervosa, mas não. Passos firmes, sobe as escadas do coreto. Primeira pessoa a fazer isso depois da história do cachorro doido. E quando ela levanta a voz pra enterrar de vez com o mito, não se sabe de onde, de trás de um arbusto, da esquina dos namorados ou do antigo armazém, o cachorro doido aparece. Todos veem, não cabe a besta nas descrições ingênuas do passado. O cachorro doido então ultrapassa a marcha, e no meio da praça, aos olhos de todos, de uma vez só, devora a menina.