6 de março de 2018

Pedaladas

Noventa. Começo do ano. Eu acabava de completar onze. A Rua Boqueirão ainda não era calçada. Nem tinha nome de rua ainda, era só um acidente geográfico que dividia as quadras 50 e 51.

Andar de bicicleta, sem dúvida, a diversão mais popular entre os meninos da rua daquele verão. Meia dúzia de bicicletas velhas que dava pra todos. A minha, versão genérica de Monareta. Tinha um certo comunismo entre os pirralhos. Era de lei ter que deixar dar uma voltinha se pedissem. Se rodasse muito, corria o risco de remoer parafuso ou frouxar corrente. Mas ninguém pensava em bicicleta como bem durável. Um bem compartilhável e altamente rodável, só.

As meninas da rua raramente pedalavam, nem com a gente, nem só entre elas. Tinha uma ou outra que vinha. Empinar e rabiar parecia não fazer a cabeça delas. Ficavam nas calçadas, brincando de fazer comida. Quando a bicicleta passava, alguma dizia: “Olha o pneu rodando”, que alguém da gente rebatia: “E a besta olhando”. No tempo de pipa, elas colavam. Também no confronto da barra bandeira. E até vinham com gosto de sangue na boca pra brincar de cuscuz.

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Papai tinha uma barra circular, ainda tem. Não a mesma. Trocava por uma nova de dois em dois anos, agora nem tanto. Acho que minha primeira foto de pirralho é em cima dela. Papai já fez distância maior que uma volta ao mundo nessa bicicleta. Monark, aro 26, puro aço. Nunca se rendeu às novidades, montain bikes, sei quantas marchas, fibra de carbono, short de lycra. Barra circular com caixote no bagageiro; ou sem ele quando precisava levar mamãe pra alguma parte de Tibiri que era ruim de ir de cadeira de rodas. Naquele tempo, carros e calçamentos eram raros. Poças e rêgos, isso tinha, e muito.

Antes de ter minha própria bicicleta, tentei pegar a barra circular escondida, mesmo sem saber o que fazer em cima dela. Isso foi três anos antes, tinha oito. Nem passei do portão. Conclui ser impossível pra alguém do meu porte preservar o equilíbrio. O resultado se tentasse, uma queda, muitos arranhões. Nem me importaria com os meus, o problema era arranhar a bicicleta. Surra de cinto na certa. Talvez tenha me acovardado, macacos adestrados conseguem controlar essa bicicleta. Semana passada mesmo, vi no youtube um vídeo de um japonês de uma perna só fazendo a desgraça numa dessas.

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Sou cangueiro. No dicionário da rua, quem pende a bicicleta pra um dos lados e sofre pra levar alguém no bagageiro. Confesso, sou. Esse negócio de manter o equilíbrio em movimento é estranho. A bicicleta pode tombar pros lados a qualquer momento, mas ela teima em continuar na vertical a sei quantos quilômetros por hora sem que o ciclista se esforce pra isso. Coisa de doido. Dizem que ser cangueiro é por algum defeito físico na coluna. No meu caso acho que não, é medo de cair mesmo. Não acreditava nessa lei da física de que se mover é mais fácil pra manter a coisa em pé. O pião girar na própria base e não tombar sempre me soou como bruxaria.

O medo de pedalar me persegue até hoje. E hoje não é só a gravidade que pode levar pro chão. Ônibus que motorista passa troco. EcoSport de pequeno empresário preocupado como vai pagar o décimo dos funcionários. Taxista perseguindo Uber. Perigos bem reais, esmagam crânios e deixam filho sem pai. Se não fosse cangueiro, poderia até ter ido participar da volta da França. Mas sou, e prefiro deixar a bicicleta enferrujar na garagem. Não me importo se a maresia come tudo que não é de alumínio.

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Era de tarde quando fui com papai lá no outro lado do conjunto levando as latas de óleo velhas e os ossos de rejeito no carro de mão. Vender sucata a sucateiro dá a mesma sensação de negociar livro com dono de sebo, a singela sensação de estar sendo assaltado. No caso da sucata ainda tem o consolo de estar passando pra frente lixo. O cara pagou com um maço de notas de dinheiro da época. Chega encheu a mão de papai, mas não valiam quase nada. Papai disse pro cara que na outra sucata conseguiria mais pelos ossos. O homem soltou mais algumas notas. Dali a gente foi direto pra feira de troca. Dinheiro naquele tempo, não se dormia com ele, os ácaros e a inflação comiam. Não tinha o que escolher. Pegar a bicicleta que dava no bolso, chegar em casa, dar um banho e colocar óleo Singer. Igual a cachorro pulguento que a gente pega rua.

Na outra manhã, acordei antes do sol nascer. Assim como fiz com a barra circular, saí pelo beco pisando em pantufas. A corrente estralava, mas ninguém acordou. A rua não é uma grande ladeira, só um aclive que não chega a três graus, cinco, vá lá. Eu não sabia nada de plano inclinado, mas tinha certeza que teria um empurrão suave da gravidade. Fechei o portão e rumei pro lado esquerdo. Cheguei na esquina, teria uns duzentos metros até a outra, a da avenida Campina Grande. Montei e tirei um pé do chão. Empurrei o pedal pra frente. A bicicleta, feito um vira-latas, empancou. Precisaria da gravidade de Júpiter pra arrancar. Botei os dois pés no chão e puxei ele pra trás como Fred e Barney faziam nos Flintstones. Agora vai. Porra nenhuma. A corrente caiu. E não era tão fácil colocar de volta feito na barra circular. Apertada. Voltei pra casa. Empurrava e imaginava quantos macacos amestrados e japoneses amputados estariam rindo de mim em suas janelas.

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Nada contra os amigos me ensinarem a pedalar, só queria chegar na roda já arrasando. Azar. Me ensinaram com todo prazer. É claro que tive que pagar adiantado por seus serviços de bike-escola: duas voltas na quadra pra cada. Regime de mutirão. Arrodearam a bicicleta, pareciam mecânicos no pit stop da Ferrari. Lá em cima da esquina. Empurrão mais forte que a gravidade de Júpiter. Mergulho sem treino, ladeira, mesmo que mínima, abaixo. Minha Monareta do Paraguai, nave espacial desacoplando os módulos ao longo dos metros.

Primeiros os dois comparsas que sustentavam o guidom de cada lado. Depois os dois que seguravam a cela. Depois os três com as mãos no bagageiro, estes não antes de um último e grande empurrão. Grande o suficiente pra que a bicicleta rompesse a estratosfera e seguisse em linha reta pelo espaço sideral. Se não foi pelo amor, foi pela dor, já diria o pastor. Eu era todo medo. Medo encharcado em adrenalina. Coquetel perfeito pra esquecer que em algum momento seria preciso frear.  Ir reto. Ir reto. Ir reto. Foda-se parar. Pedalei até a corrente cair, mesmo assim não freei. Todos viram quando passei da barreira do som. Os gritos dos pirralhos não chegavam mais a mim. Era só eu, entrando pro Guinness Book com a maior velocidade alcançada por um veículo controlado por um ser humano sem impulsão motorizada entre as quadras 50 e 51 do conjunto de Tibiri Dois. Chupa, macaco! Chupa, japa!

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Puxo da memória e não lembro como terminou a história de quando aprendi a andar de bicicleta. Também não me lembro da cicatriz que levo até hoje entre o dedo mindinho e o anelar da mão direita. Azar. Do último momento antes do esquecimento, esse lembro bem. Eu esticando as pernas pra trás, colocando a barriga na sela e esticando o corpo, feito piloto doido de motocross. Alinhei o pneu da frente em direção ao ponto cego no fim da rua e fechei os olhos. Pronto, só isso. Parece que tem uma foto dessa presepada. Só não sei quem tirou.

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Fico pensando se eu tivesse ganhado uma bicicleta menos velha quando era mais novo. Das coloridas do He-man com duas rodinhas de suporte na roda traseira. Sela acolchoada. Das que andam mais devagar que velocípedes. Eu não teria tido a sensação da primeira vez. Catarse. Pôs-se em movimento de um único arremesso. Não aos poucos. Ignorar metodologias e capacetes. Manual de usuário. Longe das preocupações maternais de cicatrizes pra vida toda. Sem essa de um passo de cada vez, caminho suave, devagar se vai longe. Fui longe por não ter rodinhas. Desembarque na Normandia, estouro de boiada. Talvez não fosse cangueiro se tivesse seguido a cartilha. Mas foda-se. Mijar fora da caixa faz parte. Bicicleta pra mim não é meio de transporte, é libertação. Não nasci pra ciclovias, passeios ciclísticos. É o medo inconstante de perder o equilíbrio que me faz subir numa bicicleta. De não saber qual o momento que o pneu vai estourar, o garfo quebrar ou, como sempre, a corrente cair. O que me faz subir numa bicicleta é a quase certeza de que vou cair. E a felicidade de chegar em casa inteiro.

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Mas não era sobre minhas experiências com essa lindeza de duas rodas que eu queria falar quando comecei a escrever esse texto. O título Pedaladas é uma metáfora escrachada pra ser escancarada em no máximo meia página. Quase uma postagem com cara de textão no Facebook. Aí, as memórias foram me enrolando, enrolando. Já viu. Mas então, é sobre uma BMX feminina branca e rosa que quero falar. E sobre a menina que estava em cima dela. Numa noite de terça numa igreja lotada em Tibiri.

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Confesso que me vinha uma sensação de poder quando passava pedalando em frente das meninas. No fundo era só um amostrado que, vez ou outra, empinava ou andava sem as mãos. Mesmo assim, se não fosse tão cangueiro teria dado carona a alguma delas pra ir na padaria ou levar, as que eram crentes, pra igreja. A Assembleia de Deus, quase na esquina de casa. Eu tinha que ir umas quatro vezes por semana pros cultos, fora os ensaios do conjunto infantil. Ia pros ensaios montado nela. Não só eu, os meninos todos faziam isso. Ficava um estacionamento de bicicletas, uma por cima da outra, como judeus mortos nos vídeos da Segunda Guerra. Eu chegava tarde pra não ter a minha esmagada. No final, me apressava em ir pra casa antes que alguma menina pedisse carona e eu passasse vergonha por minha cangueirice.

Esqueci de falar. Na Assembleia de Deus era proibido menina ter bicicleta, era proibido menina andar de bicicleta. Não só as meninas, todas as pessoas do sexo feminino, bicicleta e moto, só na garupa. O pastor citava uns dez versículos da bíblia pra justificar a proibição. Se tá na bíblia, então tá. Não, eu não pensava assim. Qual era o sentido citar a bíblia pra justificar o uso de uma coisa que nem existia na época que foi escrita? “Se Deus sabe tudo, por que não adiantou quem poderia ou não poderia andar de bicicleta no livro de Levíticos? Deus pode voltar no tempo, né? E cavalo, e camelo, não tem nada contra mulheres andar neles? E aí?”. Olhavam pra mim meio que dizendo, “esse pirralho tá lendo muita história comunista. Deve ser culpa desses professores metidos com padres da teologia da libertação”. Eu falava, falava e no final ia pra casa, e nada mudava. Só palavras ao vento.

Sabe como são pirralhos, proibir é pior, proibir é dizer, ei, vai lá, faz! Se naquela idade, a gente já fazia coisas ilegais pra sociedade, como tocar fogo no lixão só pra ver a grandiosidade do fogo, imagina ir contra uma lei que veio da cabeça do pastor. Teve um verão que a turma inventou um ensaio semanal extra, mentira bem contada. Dava duas e meia, ia todo mundo pro terreno do lado do Colégio Machado de Assis, no tempo que não era murado. As meninas crentes com saias e vestidos abaixo do joelho percorriam um circuito com buracos, galhos, pedras e folhas soltas. Ficavam a tarde inteira arrodeando o lixão. Tudo isso a cem metros da igreja, mas num ponto cego que nem Deus via.

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Até hoje ninguém sabe se foi uma das velhas chatas ou um dos velhos fofoqueiros que denunciou a nossa colônia de férias ao pastor. A farra foi boa, mas acabou com todos os pirralhos tendo que ajudar na construção de um banheiro extra pra igreja. Trabalho que durou dois dias no começo do mês de fevereiro. Foi até divertido. O pastor comprou coca-cola e cachorro-quente pra gente quando a obra terminou. A punição das meninas foi mais severa. Tiveram que passar seis meses indo uma vez por semana pro círculo de oração das velhas. Uma hora de joelho pra aprenderem a não ficar fazendo saia nem vestido avoar por aí.

O pastor pensou que, no final, tudo seria um aprendizado. Os meninos mais fortes. As meninas mais ordeiras. Incentivou a gente levar elas em casa, tomando o cuidado de sentarem de lado. Nada de levar no quadro. Mas ele não esperava que um pai de uma delas fosse botar banca e não comprar a punição pra filha. Esqueci o nome dele, um bigodudo alto, tinha uma mercearia no Três. A filha era a líder das meninas, a que solava um terço das músicas pro resto do conjunto entrar com tudo no refrão. “Minha filha não fez nada errado”, ouvi esse homem falar muitas vezes nesse período – na padaria, no mercadinho, na frente e até dentro da igreja. Era um falador. Ex-vereador, tinha perdido a última eleição por dois votos. Primeiro suplente. Culpava o pastor por não ter tido tanto voto quanto esperava. No culto de quinta antes das eleições, o pastor tinha dado o microfone pra um primo de Várzea Nova dizer o quanto estava preparado pra representar o povo de Deus. Nessa eleição, esse primo foi o mais votado e o voto da legenda puxou mais dois pra dentro da câmara. O dono da mercearia que era doutra coligação ficou chupando dedo. Ele até acreditava que a punição pras meninas tinha sido mais severa por sua filha estar entre elas.

O cara foi em João Pessoa e comprou uma BMX, daquelas de filme de Sessão da Tarde. BMX feminina cor-de-rosa com branco. Procura aí no google que você acha. No dia da Santa Ceia, ela foi toda arrumada pedalando a BMX pra igreja. Todo mundo viu quando chegou. Sei disso porque estava na primeira fila dos curiosos, com a cara de isso-vai-dar-merda. Não precisava ser inteligente pra chegar a essa conclusão. O pastor ficou calado, não disse nada naquele dia. Mas, uma semana depois, antes de começar o sermão, avisou que o dono da mercearia estava eliminado da igreja e nem ele, nem ninguém de sua família poderia frequentar os cultos de porta fechadas. “Se não é pelo amor, é pela dor”.

Estavam lá, o pai e a filha. Ela, no banco na frente do meu, chorava sem parar. Seu pai ficou em pé quando o pastor terminou de falar e, “Tome no cu, seu merda”, só disse uma vez. Um alvoroço. Ele veio, pegou a filha e saiu. A igreja ficou em silêncio. O coral das senhoras cantou um hino qualquer pra tapar o buraco da vergonha. Nem deu dois minutos. Lembro da cena. A menina volta. Entra pela porta lateral em cima de sua BMX. Avança em direção ao espaço vazio de frente ao coral e, bem no meio, aperta o freio. Seu vestido gira junto com bicicleta como o de uma bailarina. Bem rápido. Nem dá pra saber o que veste por baixo. E ninguém prestava atenção nisso. Só pro vestido em leque. A bicicleta gira, uma guinada de centro e oitenta graus. A menina coloca o pé no chão só por um segundo. Depois, mete força no pedal e arranca reto pelo corredor principal. Seu vestido por trás é uma capa de super-herói. Nem lembro o que aconteceu depois. Às vezes imagino que ela saiu voando pelo céu de muitas estrelas, imagino que nunca mais pousou. Com seu vestido esvoaçante, montada em sua BMX sem rodinhas.

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Naquele ano, as coisas mudaram. A igreja teve umas reformulações na doutrina. Uma das filhas do pastor quis porque quis ter uma bicicleta. Aí por votação entre os membros num culto de uma terça chuvosa, resolveu-se que membros do sexo feminino, com algumas ressalvas, daquele dia em diante, também podiam pedalar. Ele fez questão de indicar a marca certa e a loja de um amigo lá no Centro de Santa Rita. Dividia em vinte e quatro vezes no carnê. E entregava em casa.

Tibiri também teve suas mudanças. Calçaram minha rua. O carro do lixo começou a passar. Muraram o Machado de Assis. Andar de bicicleta ficou mais perigoso, começaram a roubar em plena luz do dia. Também mudei. Na igreja, deixei de ser o pirralho tagarela que queria saber e contestar tudo.

Nunca mais vi a menina da BMX. A família se mudou pra Campina Grande em maio daquele ano. Uns dizem que virou estrela do Cirque de Soleil. Outros dizem que faz strip numa boate de elite em Fortaleza. Em todo caso, especialista em tombos, cicatrizes e vestidos esvoaçantes. Nem lembro o nome dela pra procurar no Facebook. Penso no seu ato toda vez que desço uma ladeira na minha montain bike comida pela maresia e, por um ou dois segundos, fecho os olhos. Naquele dia, não vi porque ela estava de costas e não sou de inventar. Mas, com certeza, pelo jeito firme e reto que pedalava a BMX rosa com branco, a menina tinha os olhos bem abertos quando cruzou pela porta da igreja, e, sem querer, fez um buraco no véu invisível que dividia a gente do resto do mundo. E por lá, nos anos que se sucederam, muitos daqueles meninos e meninas fugiram, feito muriçocas ao amanhecer, sem olhar pra trás.