6 de julho de 2017

Não era eu, mas só que era

Tinha tudo pra ser um dia como outro qualquer.

Você acorda, daquele mesmo jeito entorpecido de sempre, ainda com o barulho do celular que te despertou no ouvido (já são seis horas, você pensa, resignadamente); vai ainda meio cambaleando pra cozinha, a gata se desvia do caminho (ela sabe que pode ser vítima do seu estado de letargia, afinal, já convive com você há três anos), você bebe água e volta pro quarto, onde vai se preparar para começar o seu dia normal de trabalho.

Está tudo dentro dos conformes, até no gesto de descer as escadas apressadamente, como se estivesse atrasado; com o saco de lixo na mão para depositar no local correto. Dirige-se ao carro pensando no pequeno problema que tem de reparar no mecânico, suspira ao lembrar-se do trânsito que tem pela frente, entra no carro, dá a partida e vai.

Lá pelas tantas, alguém dirigindo um carro de médio porte resolve sair de uma rua lateral e entrar na sua frente. Um motoqueiro se assusta com o veículo que se materializou de súbito, quase se jogando de encontro ao seu próprio carro. E você mesmo, se não freia, teria chocado violentamente no carro alheio.

É a partir daí que as coisas degringolam.

Você corta o carro, se posiciona na frente dele e não sai mais. A pessoa atrás de você dá um sinal de luz, e você permanece lá, parado. Dois segundos depois, faz gesto com a mão pela janela, como a dizer "passa por cima agora, seu...". E em seguida, mostra aquele dedo. Os motoristas começam a buzinar. Você, ainda com ódio, bate por fora na porta do seu próprio carro. Sua intenção é assustar e intimidar o motorista que lhe causou tanta ira.

Em seguida, você, ainda fervendo, passa a primeira e sai dali, deixando um motorista estático  para trás.

Não se levando em conta as inúmeras possibilidades do que poderia ter acontecido a qualquer um dos envolvidos, desde "simples" agressão verbal até a morte de um ou todos os envolvidos, o que ocorre é que, muitas vezes, sem que a coerência seja chamada para a conversa, agimos de uma maneira que, passada a fúria, nos pegamos dizendo a nós mesmos: eu não sou essa pessoa.

A explicação faz sentido: ninguém quer levar fama de ser truculento, grosseiro ou violento. A questão é o auto-engano contido na assertiva. Dizer que você não se reconhece na atitude, que não costuma agir de tal e tal maneira, vá lá. Mas dizer que não é você... sinto muito, mas é. Não tenha dúvidas: é você, completamente você.

Provavelmente um você que precisa ser contido, domesticado, trabalhado. Afinal, não se convive em sociedade com esse tipo de atitude. Pelo menos não se elas vierem com frequência, e numa escala crescente que leve aqueles que nos amam a questionar quem realmente somos.

A questão toda está no fato de que somos aquilo ali também. E sim, há coisas em nós que precisam ser revistas. E se um dos sentidos de estarmos aqui não for evoluirmos, então somos mesmo uma bela escarrada de Deus, algo em que me recuso a acreditar. Não por motivos religiosos, mas pelo simples fato de que não é algo que eu sinta, ao caminhar pela vida.

Podemos ser muito mais coisas do que pensamos ou acreditamos; algumas dessas coisas talvez até nos fizessem mais felizes do que somos hoje (quem sabe?). Muitas vezes, o medo arraigado de estar transgredindo algo nos torna estáticos. E o fato é: o medo de transgredir muitas vezes impede a transcendência.

Se você não estiver fazendo algo que magoe alguém, que destrua laços ou aniquile alguém irremediavelmente, dê o passo seguinte. Qualquer que seja o resultado, sempre será você, ao fim e ao cabo. Só há o que temer quando não buscamos mudar. A estagnação é o que nos mumifica em vida, o que nos impede de nos tornarmos pessoas melhores, se não para outros, para nós mesmos.

Não importa o que a gente descobrire que existe dentro dos nossos lugares mais escuros. É essa pluralidade que nos move, o que faz as sociedades irem adiante (embora nem sempre pra frente). E, se em toda uma vida, mal começamos a descobrir um mínimo que seja de nós mesmos, é bom que se entenda: quanto menos ínfima for nossa contribuição para o mundo, é porque maior foi nossa transgressão diante das amarras que a vida nos impõe. Medo de se soltar dos grilhões? Todos temos. Mas nos libertar deles já é parte do processo. Sem culpa, como deve ser qualquer ato mínimo em direção ao desconhecido que nos liberta. Sempre.