28 de junho de 2017

Tempo de escola

Não raro, me pego pensando na questão da finitude. Da minha, da de todos que me cercam, dessa inevitabilidade e da aceitação que tenho deste fato, pois que é impossível sobrepujá-lo.

É difícil, para muitos, compreender a minha visão das coisas, mas a morte para mim não é um fim, é parte de um ciclo, e embora eu não queira ir embora tão logo, não a temo. Quando eu sentir que for minha hora de recebê-la em meu amplexo, nos abraçaremos firmemente, sabendo eu que daquele abraço somente um se desvencilhará do outro e permanecerá o mesmo.

Há alguns dias, fazendo algo que raramente faço, mas que às vezes se faz necessário, fui ao shopping com uma lista de coisas para resolver. A ideia era precisamente esta: entrar, resolver o que tinha para ser resolvido e ir embora, já que o ambiente de shopping centers, pra mim, é execrável.

Entre uma loja e outra, uma esquina e outra, a surpresa: avistei, do lado oposto ao qual eu caminhava, uma ex-supervisora de uma escola onde estudei na infância. Ela estava sendo empurrada por uma mulher bem mais jovem, numa cadeira de rodas. O rosto meio desfocado, os cabelos ralos e grisalhos, mas ainda assim, altiva, como sempre fora em minha lembrança dos tempos de escola. Pensei na mesma hora: ninguém escapa do tempo. Lembro-me daquela mulher com o olhar ferino. Com raiva por alguma traquinagem, ela fixava o olhar no acusado e com o dedo em riste fazia até Hitler se comportar direitinho. Pelo menos é assim que ela está no meu imaginário.

Pois foi mais um templo que tombou.

Na mesma semana, fui a uma livraria que costumo frequentar. Enquanto eu esperava minha vez na fila onde as pessoas ficam para colocar livros em papéis de presente, olhei em volta e vi outra pessoa dos tempos de colégio. Uma senhora que fora coordenadora da mesma escola, responsável pelos alunos do ensino médio. O mesmo tipo de roupa, o mesmo corte de cabelo. Mas o olhar... ela sempre tivera um olhar doce, sereno. Minha memória evoca a figura de uma senhora firme, austera, mas que trazia alguma ternura no semblante. Agora, seu rosto parecia cansado, seu olhar, perdido. Lembrei-me que, há uns três anos, ela perdeu uma filha, que fazia sua residência em medicina num outro estado, num terrível acidente de carro.

Então compreendi que ali estava não apenas o peso da idade, mas do tempo como um todo, do tempo com os acontecimentos que ele traz, e que se fazem refletir de tantas formas no corpo e na mente. Pouco tempo depois, sua outra filha, apenas um pouco mais nova do que a que falecera, chegou e ficou perto da mãe. Seu olhar também me pareceu um pouco quebrado. Eram as fisionomias de duas sobreviventes.

Foi pensando nisso, e na tal coincidência de ter visto essas duas pessoas dos tempos de escola, que comecei a lembrar do muito que passou e do pouco que ficou daquele período.

Sempre que a vida me trazia para o lado de cá, aquela era a escola para onde ia, todos os dias. Onde fiz grandes amigos, que, como a maioria dos "grandes amigos" da infância, se esfacelam com o tempo. Onde me descobri como homem e ser humano, como profissional.

Revisitei mentalmente todos os corredores, lances de escadas e salas das quais lembrava - e eu lembro de quase todas. Lembrei-me de algumas aulas, da absoluta inutilidade prática da maioria delas, mas também de professores marcantes, de momentos de dúvida e dor, de lágrimas e sorrisos, porque é dessas coisas, tão comezinhas, que se compõe o tecido da vida.

Pensei naquelas duas mulheres como símbolos dessa caminhada, sempre o fim, sempre a extinção, porque esta é a coisa mais certa enquanto respiramos. Conquanto ainda vivas, suas vidas já não vicejam, já não trazem mais o orvalho inerente à flor aberta no dia seguinte à serena chuva que caiu durante a noite.

A melancolia se deu não pela lembrança de um tempo que não volta - e que eu não faço questão que volte. Infância passou, dou graças e não olho pra trás com um pingo de saudade - mas pela certeza de que o fim, nem sempre, significa um novo começo.

Às vezes um fim é apenas isto: o fim da linha, do pó ao pó, a lembrança, com ou sem saudade.

E foi no vislumbre dessas duas mulheres que, mais uma vez, eu me vi confrontado com a minha própria mortalidade. E eu, que não tenho como ter saudades de mim mesmo, me adianto em ir vivendo, da forma como eu entendo que seja a felicidade, para que, com um pouco de sorte, nos minutos finais, eu não me veja repassando minha vida com a melancolia do cair das folhas de outono.