3 de maio de 2017

A poesia de Maria Rezende

Maria Rezende é carioca de 78, poeta, performer, montadora de filmes e celebrante de casamentos. Seus três livros, "Substantivo feminino (2003), "Bendita palavra" (2008) e "Carne do umbigo" (2015) já venderam mais de 2.500 cópias. Tem poemas publicados na Revista Playboy, na Poesia Sempre da Biblioteca Nacional e na antologia "Imagining Ourselves" do Museu Internacional da Mulher de São Francisco, entre outros. Já se apresentou em palcos do Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Belém, Porto Alegre, Lisboa. Como montadora assina seis longas-metragens e muitas séries de televisão. Celebra casamentos com muita emoção, em cerimônias costuradas por poesia. www.mariadapoesia.com

 

[poema sem título]

Bendita é a palavra
que atravessa o meu deserto
e ultrapassa o meu silêncio

Bendita cada letra escrita
cada som soprado ou dito
– seja sussurro, seja grito –

Bendito o fruto desse alfabeto
o eco novo que meus dedos trazem
espelho torto de me revelar

Eu velo é pela força dela
e são pra ela todas as minhas rezas
pro seu feitiço e pra sua ferida

Bendita também a palavra maldita
que bota fogo nesse apartamento
a portadora de toda a agonia

Toda palavra carrega um incêndio
cada palavra tem no fundo um mar
bendita é a palavra que se deixa respirar

 

*

 

[poema sem título]

O risco não é só um traço
é a distância entre um prédio e outro
a diferença entre o pulo e o salto

O risco é riqueza e asfalto a percorrer
pode ser a pé
pode ser voar
o risco é o bambo da corda solta no ar

Dentro dele cabe cálculo
cabe medo e incerteza
cabe impulso instinto plano

O risco é a pergunta te atacando ao meio-dia
é o preço do sonho pra virar realidade
é a voz das outras gentes testando a tua vontade

Aceitá-lo é saber que não existe
estrada certa
linha reta
vida fácil pela frente

Mas que asa
asa
asa
só ganha quem planta no escuro do braço
essa semente de poder voar

 

*

Pulso aberto

Somos porta de entrada
e de saída
somos deusas e escravas
há mil gerações

Dentes afiados
no escuro de entre as pernas
veneno na ponta da cauda
bruxas putas loucas santas

Somos as que sangram sem ferida
donas do prazer
donas da dor
as invisíveis
as perigosas
as pecadoras
as predadoras

Insaciáveis e geradoras
os corpos secretas casas
somos seres de unhas e tetas
caminhando aos milhares as estradas

Somos a terra e a semente
carne de aluguel em alma de rainha
as submissas as bacantes
as que procriam e as que não

Somos as que evitam o desastre
as que inventam a vida
as que adiam o fim
mulher
multidão

 

*

[poema sem título]

Adoro pau mole.
Assim mesmo.
Não bebo mate
não gosto de água de coco
não ando de bicicleta
não vi ET
e adoro pau mole.

Adoro pau mole
pelo que ele expõe de vulnerável
e pelo que encerra de possibilidade.

Adoro pau mole
porque tocar um pressupõe a existência
de uma intimidade e uma liberdade
que eu prezo e quero, sempre.

Porque ele é ícone do pós-sexo
(que é intrínseca e automaticamente
- ainda que talvez um pouco antecipadamente)
sempre um pré-sexo também.

Um pau mole é uma promessa de felicidade
sussurrada baixinho ao pé do ouvido.

É dentro dele,
em toda a sua moleza sacudinte de massa de modelar,
que mora o pau duro e firme com que meu homem me come.

*

O mar por dentro

Eu pus as mãos no seu cabelo sem pedir
eu te toquei e só então vi: te invadi

Todo corpo é uma casa
cada corpo é um frasco onde se lê: frágil
onde se lê: força
onde se lê: entre sem bater

Há entre nós silêncios confortáveis
e conversas transparentes
palavras feitas de dedo e vapor
palavras que só acordam com o calor

Moça de duas bocas que sou
eu te devoro
de devolvo
te leio com as mãos
durmo nos teus braços
não te prendo
eu te passo, passarinho
e agradeço pelo ninho de sonho entre meus frutos
pela seta apontada pro presente
pelo afeto direto e sem rodeios
por tudo que a gente não disse

Você só seria mais bonito, moço
se não existisse