24 de setembro de 2021

TERRALEGRIA

Na terra que fecundas boas sementes colherás alegria. Resenha do livro Terralegria de Wagner Moreira e projeto gráfico de Mário Vinícius, lançado pela Impressões de Minas.

A poesia de Wagner Moreira em Terralegria é diferente das conhecidas obras de inspiração portuguesa que ele costuma escrevinhar. Seus textos em prosa-poética tal qual conhecemos em Solos (2015, Scriptum) são difíceis de serem lidas, uma leitura carregada e subtraída de pontuações ao estilo saramaguiano. Entre espaços e não-espaços, os vazios das páginas preenchem as lacunas de uma voz que ecoa incansavelmente. Ao leitor não habituado a ler literatura portuguesa pisará em terreno desconhecido, assim em Terralegria não se faz diferente, um terreno novo, estranho ao leitor desatento.

Da cantiga medieval a Mallarmé, do concretismo a poesia visual, Moreira transita por entre poéticas em seu fazer literário. É nítido e evidente que seria incauto da sua parte deixar de lado o experimentalismo gráfico e tipográfico editorial. Eis que não se esquiva a esse desafio e oferece aos ávidos leitores por obras diferenciadas, singulares e únicas.

A escrita de Wagner Moreira requer do leitor atenção necessária para captar os movimentos, os diálogos com outros elementos que compõe o conjunto do livro, dos quais ele busca referenciar em seu texto.  No seu percurso de poeta-pesquisador é inegável a ideia de que uma obra experimental se tornasse um projeto distante de sua sina literária e editorial enquanto autor, poeta, professor-pesquisador em edição e conselheiro editorial. Não se aventurar a por em prática as teorias tão desbravadamente declamadas em suas aulas no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, no Departamento de Estudos de Linguagens (Letras e Tecnologias da Edição) é no mínimo um atentado ao seu existir poético.

Em Terralegria, temos 11 cânticos em duas ou mais vozes que entoam declarações de amor e amizade, tal qual uma terceira voz entona como o cântico dos cânticos, narrando um épico amoroso tão homérico se não fosse o fato de sermos interrompidos nessa leitura para outra leitura, a do livro-objeto-gráfico.

Andréia Oliveira, com quem sempre discuto poemas, análises e dilemas acadêmicos, compartilha comigo suas impressões dessa obra. Ela me confidencia que no Canto V, o poeta  Wagner traz o poema que coroa o título da obra, a terra e a alegria, como se ambas significassem o que diz no verso “desejos e memórias que mesclam a vida”. Para ela, esse ciclo, mostra que as estações mudam a terra e todos os percursos devem ser celebrados, pois desejam festa, sinônimo de alegria. No ímpeto desse canto que discutimos, percebo que Wagner situa a terra à qual faz referência no poema. No verso “o aço que corre veia adentro/de cada um que por aqui viva” entoa uma cantiga mineiral, onde sob esta terra escoa o minério que pulsa a economia mineira, das Minas Gerais. Um futuro escrito nas cartas, pode não dizer muito, imprevisível, mas a certeza única em que o poema revela os segredos que só a terra sabe demonstrar ao brotar de dentro apenas mediante ao céu que é o único capaz de cuidar do que temos. Se a natureza resiste a ação humana, é preciso celebrar.

Foto: Elza Silveira

A confluência poética com os grafismos de Mário Vinicius, designer responsável pelo projeto e diagramação da obra, transportam o leitor para outra dimensão, a do livro como objeto poético.

Mário imprime não só o texto poético escrito por Wagner como ilustra-o por meio da estrutura do livro em um formato caixa-postal, título em alto relevo, mantendo a mesma ideia do códice, porém onde a caixa se parece um embrulho é na verdade a capa que ao abrir encontramos os principais elementos paratextuais presentes nela. Por dentro, 11 cânticos estruturados em dobras sanfonadas, cada uma se expande à medida que desdobramos o capítulo ou cântico. Cada cântico é finalizado por grafismos tipográficos que desenham diferentes formas geométricas, em uma delas podemos notadamente perceber as montanhas de Minas, numa construção visual que compõe os poemas, tornando cada elemento gráfico um poema visual. Assim como as páginas em branco remontam à Mallarmé, possibilidades de um silêncio, uma pausa ou uma leitura a ser preenchida pelo olhar, pelo manusear a obra. Cada movimento, conduz o leitor à leitura do livro, cada gesto que o objeto-livro requer direciona o caminho do texto. Um conjunto de elementos táteis, sensoriais e visuais despertam todo os sentidos biológicos da leitura. Até mesmo o som, abrir a caixa, desdobrar as folhas e ler em voz alta os cânticos, cantá-los também remetem o memso gesto do virar a página, abrir e fechar o livro, ler em voz mental. Nossos sentidos são eriçados a experimentar a obra pela sua forma, e convida o leitor a sair do lugar comum do livro como códice.

Ainda sobre o título, poeta e designer brincam com a aglutinação das duas palavras Terra + Alegria e a capa ganha um poema visual com o título assim como o fez Décio Pignatari com o poema concreto Terra. O elemento visual é peça fundamental da poesia concreta, nesta obra Mário faz jus ao movimento, imprimindo características que aproximam Terralegria do poema Terra.

Outro detalhe importante do título é o papel que foi escolhido para imprimir o livro, papel reciclado, uma forma de preservar o meio ambiente, a destruição da nossa terra pelo plantio industrial de árvores para extração da celulose. É preciso compreender nessa obra que o que brota do chão é vida, e a vida esta, sim, deve ser preservada e festejada.

A obra Terralegria encontra-se disponível, em exemplares limitados e numerados na editora Impressões de Minas, uma editora que tem um laboratório de edição que vai do texto a gráfica e proporciona aos autores um trabalho gráfico-editorial diferenciado dos padrões industriais de produção livreira, além de prezar autores independentes e fora do grande circuito. Vale a pena conhecer o catálogo no site www.impressoesdeminas.com.br