21 de julho de 2016

Morar fora

Morar fora é saber quando caem todos os feriados. É contar os dias que faltam para as férias. É ver paralelepípedos e lembrar de minha rua. É sentir saudade da briga com a família, querer se sentar à mesa do almoço de domingo. Morar fora é ver fotos. Rir de noite, sozinho no quarto. Morar fora é conversar por cartas, pelo telefone, pela internet. É querer deitar na antiga cama. Morar fora é ler Nietzsche e procurar um cadáver. É visitar o cemitério que carrego. Procurar em cada padaria o pão de casa. É comer no restaurante que tem o mesmo arroz de outro tempo. Morar fora é entender a “Canção do exílio”. É deitado passar a tarde na música da antiga varanda. É não ver os amigos num sábado à noite. É acordar assustado e não saber onde está. É, como Gagarin, perceber que sua terra é azul. É se sentir o filho pródigo, o judeu errante, um personagem de Camus. É renunciar ao paraíso para reinar no inferno. É colocar a cabeça no travesseiro e sentir o afago da fronha da infância. Morar fora é conhecer o que Daniel passou na cova dos leões. É procurar rostos amigos na multidão amorfa. É mastigar outros crepúsculos. Morar fora é sair da caixa de Skinner. É testar hipóteses de Taine. É comer doce de leite sábado de tarde. É arrumar outro quarto. Morar fora é aprender a fazer miojo, brigadeiro, pipoca, arroz, feijão, lasanha. Morar fora é aprender a comprar lasanha no supermercado. É sair do panóptico, ver queimado o Ateneu. É mudar o guarda-roupa. É lavar o tênis. É aprender a utilidade do escuro. Morar fora é se conhecer desconhecido. É se sentir o Poema sujo, ou confidências de um itabirano. É ver fotografias numa parede em branco. Morar fora é esperar Perséfone, é desejar Carlota, é sonhar com Dulcinéia. É cavalgar no Rocinante. É procurar por toda parte os óculos que estão na ponta do nariz. É wander round and round, nowhere to go. É fazer turismo sem ser turista. É ver sair capital econômico e ver entrar capital social, cultural. É chorar ao ver Midnight cowboy. Morar fora é um mantra, uma ladainha. É ficar quarenta dias no deserto. É ver em cada esquina cair um pouco a vida e as ilusões serem reduzidas a pó. Morar fora é dormir Iracema e acordar Madame Bovary. É perder a muleta que dava estabilidade, mas impedia de andar. Morar fora é, de vez em quando, ter uma saudade transformada em melancolia e se ver morando no vazio.