18 de maio de 2017

Não dito

Pra dizer a cidade não é preciso estar nas ruas, nas praças, ao ar livre. O portão trancado diz a cidade. Cadeados, alarmes, chaves, muros, interfones. Quanto mais se guarda, mais se mostra a cidade. A soleira da porta, a porta, as paredes, as janelas e o ar condicionado, falsos limiares, dizem a cidade. A fumaça dos carros está nas salas dos apartamentos fechados. A poeira do asfalto nos cantos. O tênis, com o pó das construções, dorme ao lado da cama. A televisão dispensa a vida lá fora. Delivery. Os móveis da casa, os guarda-roupas, as gavetas, as calças, os bolsos dizem a cidade. Tickets, moedas, cartões sobre a cômoda. O wi-fi público atravessa minha perna, conecta meu desktop. As unhas estocam cidade. Nos ralos do chuveiro arranham partículas de cidade. Mesmo dentro de si, o impossível silêncio diz a cidade. Cortado pela sirene, pela moto que passa, pela chuva que estala o telhado do vizinho. Ainda que não haja barulho, dentro do meu estômago a cidade está triturada. Na minha garganta, a cidade seca. A luz lambida pelo olho diz a cidade. Durante o blecaute, no cômodo mais fechado, tudo breu, ao primeiro raio de lanterna ou chama de vela a cidade é dita a mim. Sem lanterna, com o rádio de pilha, ou com a bateria do celular, a música arranha cidade no meu tímpano. No escuro mudo, o vazio repleto de cidade: a bala citadina perdida nas avenidas do corpo.