29 de abril de 2016

A ficção de si mesmo

A autoficção ou “ficção autobiográfica” parece ser uma tendência incontornável da literatura contemporânea. Diferente da autobiografia, onde há um compromisso do sujeito com a verdade, a autoficção permite ao eu ficcional, ou para usar uma palavra mais em voga, ao self, reinventar-se enquanto personagem literário. A história que ele nos conta é “real”, mas não exatamente idêntica à realidade, pois sendo a mesma é também outra. Mais do que a autobiografia de um escritor, vemos na autoficção a construção de um self literário. Na prática, a expressão romanesca de uma subjetividade.

Se a autobiografia pertence ao século XIX, a autoficção é própria do XX, porém sua expansão é um fenômeno essencialmente pós-moderno. Ainda que tributária dos Ensaios de Montaigne, das Correspondências de Flaubert ou mesmo das narrativas e romances de Romain Gary, e de seu alter ego Émile Ajar, esse novo gênero ampliou as fronteiras da ficção de si mesmo para além da França, onde ela nasceu, incluindo hoje autores tão diferentes entre si como o holandês naturalizado austríaco Thomas Bernhard, o sul-africano J.M. Coetzee e o norueguês Karl Ove Knausgard. Ela também é praticada por autores nacionais tão distintos quanto Bernardo Carvalho, José Castello e Cristóvão Tezza. O que são essas narrativas que abalam profundamente os limites da ficção e da realidade se não ficções impossíveis do self?

A psicanálise contribuiu de maneira inequívoca para a mudança de perspectiva assimilada pela literatura desde o modernismo, na medida em que ela inventa uma narrativa do sujeito sobre si mesmo. É a partir do momento em que alguém reconta a própria história, em que ela é reelaborada, reescrita por meio da análise das memórias, que uma ficção sobre si mesmo, ou melhor, uma verdade sobre si mesmo pode, enfim, se manifestar. Para o advento da psicanálise, não foi casual que Freud tenha sido um grande leitor de Shakespeare, Cervantes e Goethe. Ao lado do amor, do sexo e da morte, temas que interessaram a esses escritores no passado e ainda permitem interpretações originais, talvez o self seja o grande tema de nossa época. Portanto, nada mais natural do que a literatura se apropriar desse assunto vasto e inexplorado, o sujeito e seu inconsciente, transformando-o em matéria de ficção e, por consequência, de reflexão.

No entanto, o risco da banalização do self como tema contemporâneo leva à sobrevalorização das redes sociais, baseadas em perfis engenhosamente construídos, em imagens retocadas, em escassos caracteres cujo risco é fazer referência apenas a eles próprios, e não ao outro, esse alter ego, esse outro self que nos ajuda a estabelecer e ampliar a imagem que temos de nós mesmos. Se a autoficção olhar apenas para a própria imagem, e não pelo que se passa à sua volta, como o drama dos imigrantes que atravessam o Mediterrâneo em buscam exílio e de uma nova vida na Europa, ela terá grandes chances de ser assimilada como apenas uma tendência irrelevante. Ela desperdiçará a chance de se estabelecer como movimento estético para fora das fronteiras da França, seu principal bastião, se é que a literatura tenha um território, e não um espaço livre de circulação por onde ela pode transitar sem nenhuma coerção moral ou física.

E talvez seja justamente essa uma das marcas de nosso tempo, a falta de humanidade que tende à barbárie. Talvez a saída desse impasse em que nos encontramos hoje seja menos um retorno a si mesmo e mais uma abertura àquele que não se parece exatamente conosco − mas que guarda em si uma humanidade comum a todos nós, agentes ou não da história, individual ou coletiva −, por mais que possa ser difícil essa identificação em vista dos atentados de 2015 em Paris. Não apenas pelas redes sociais, o que reforçaria ainda mais o narcisismo desmedido de nosso tempo, embora elas tenham sido úteis ao denunciar o drama dos migrantes, mas, sim, pela via da ficção, do drama, da poesia, do ensaio, do romance.

Precisamos nos desapegar de nossa visão de mundo para enxergarmos o outro. Quem sabe a literatura, paradoxalmente em seu viés autoficcional, possa nos servir para ver aquilo que insistimos em ignorar? E, até para criar algo novo a partir de nossa história e de nossas vivências, sejam elas traumáticas ou não, que nos coloque em relação com o outro, precisamos provocar um deslocamento interno.

Com clarividência, o escritor Franz Kafka talvez tenha feito a autocrítica mais radical e indicado o desfecho possível para o mal-estar na literatura (ou mal-estar na civilização, nas palavras de Freud). O autor de A metamorfose, um exilado na própria terra, que certamente se envergonharia da postura da República Tcheca diante do conflito, disse: “No combate entre você e o mundo, prefira o mundo”.

 

Tiago Franco, 1974, é autor de Por que os loucos escrevem os livros tão bons (e-galáxia) e O olho vesgo (Ateliê Editorial), publicado sob pseudônimo. “Desapontamentos do dr. Lacan” saiu na coletânea de contos Encontros na estação, organizada por José Castello (Oito e meio). Seu primeiro romance, Onde os paranoicos fracassam, foi pré-selecionado na edição de 2015 do Prêmio Sesc de Literatura. Foi premiado com o 1° lugar no V Concurso Municipal de Contos de Niterói, 2007, com “O inconsciente de Schmitz”, incluído na coletânea lançada pelo selo Niterói Livros; e 2° lugar no Concurso Literário da Academia Brasileira de Médico Escritores (ABRAMES), em 2009, com o conto “Wall Street Journal”, ambos reunidos em Por que os loucos.