9 de março de 2016

A poesia de Raquel Gaio

esfregar com grave entusiasmo
as partes não utilizadas do corpo

paralíticas sombras de promessas
berço montado e não utilizado

lugares que um dia anunciaram um deus
prematuro e de tez sóbria
sem pergunta alguma
faca na mão
ungindo dialeto falho
torto como a dobra do canto direito do antebraço
desejando quando crescer estrear numa nova guerra mundial.

tem mais vida aquilo que nunca se usa?

tornar líquidas como a água que escorre pelo meu corpo
as partes incrustadas de se.

tudo sempre desliza.

ou não?

 

*

 

a noite essa boca escancarada de deus
pingando sobre nós
todos os nossos desperdícios
esses hematomas e acontecimentos esfarelados
na TV uma onça abocanhando sua presa
e minha traqueia me fechando como um suicídio involuntário
o dente acavalado interrompendo o son(h)o
o ventre me nublando os olhos e a fala
- carne escandalosa -
troco de posição
mudo de canal
tento costurar os hiatos das pernas
mas me encharco de começos.

 

*

 

penso nas bênçãos que não encontram os corpos
a que foram destinadas
nos objetos de infância que não possuem memória
e se aproveitam disso
no tratado dos dias que trabalham
para alimentar o câncer
na palavra salvação costurada na boca
daqueles que dormem em colchões de sangue.

a mão completamente enfiada na ferida
o tempo de cozimento dos legumes inalterado .

um punhal é cuidadosamente limpo
numa sala quase escura
a rota das bênçãos contudentemente desviada
os ossos ressecados camuflados dementes
é preciso não se perdoar continuar sujo
como o dia disfarçado de mitos e alturas
como as vértebras cínicas se inclinando sobre a terra seca.

 

 

*

 

entupida de orfandade,
abro o dorso com uma espátula que atravessa minha altura
e encontro lá um escaravelho antigo
edemas não tratados um sol sangrando no pulmão
uma contusão sempre pontual
carne , boca, nervo, tudo deserto esplêndido
um estonteante animal deficiente.

um cheiro violento sai da minha carne
e as vozes dos meus pais são como um rinoceronte na minha medula
sou atravessada em todas as idades.

já contou de quantas vértebras somos feitos?
qual gesto evoca a ausência que há em mim?

meus verbos são nódulos que afundam de delírio
e nas minhas bordas estão costuradas as datas de suas vertigens.

qual a espessura da tua mudez?

arar essa terra pagã como a única salvação
fazer com que as cicatrizes sejam mais importantes que as palavras.

 

*

 

 

tua fronte esgarçada nas primeiras horas da manhã
o corpo cru sobre a cama inválida
os pulmões sobreviventes de seus próprios dilúvios
o desejo de um grande salto cravado em cada vértebra.

quando foi que desaprendeu de ti ?

assisto, como quem tem vocação para a demolição ,
os corvos se alimentando de tua inércia vencida.
sou tua testemunha incorporada nos pés da cama
estou deitada nas suas extremidades esquecidas.

 

 

 

Raquel Gaio tem afeição por palavras sujas ou que se sujem. as ruínas e os desertos por terem tanta vida. as ausências como um lugar de acontecimentos. acredita no corpo, na sua grande narrativa poética. Performa e fotografa imagens que nascem incessantemente dentro dela.

compõe em : www.sensacaodevioleta.blogspot.com