2 de março de 2016

A poesia de Carla Andrade

O ESPELHO

Essa mulher no espelho
tem o mesmo olhar
abotoado da menina que roubava
as sombrinhas de cogumelos
das árvores e dos pastos.

Esse olhar no espelho parece
bolinhas de gude
na escada rolante,
olhos inconsequentes.

Essa mulher no espelho
tem gosto de hóstia
ao lembrar
dos dedos de menina
a lambuzar o próprio sexo.

Essa mulher é a mesma
que se atira nas raízes do seu colo
e se retira com nacos de barro
de obra inacabada.

Esse reflexo no espelho é o
reflexo de tantos outros reflexos.
Máscaras de pétalas
secas pelo tempo.

Coragem.
Pediu para o homem.
Essa mulher ainda sou eu?

 

Anatomia das Cores

A primeira vez que vi um
sapato velho na fiação
entendi o abandono
de se ter alma.

Preferia ter só asas,
assobio de pássaros.
Folhagem pisada.

Mas me colocaram uma alma,
num buraco,
bem na hora que o mundo deu um soluço.

Depois do sapato velho na fiação,
não adiantou mais ver
as cores gentis das quitandas.
Nem mão de moço no rosto de moça.

Tudo parecia chuva
corroendo carroça
na contramão.
Vento de través.
Telhas encardidas
sem promessa de
aventura de criança.

Tentei adestrar as gotas das lágrimas.
Enlouqueci cada palavra do silêncio
até que se curassem.
Não adiantou.

A alma e sua falta de carne
continuaram enterradas
em caverna
de mãos vazias...
Como uma canção
Sem sintonia
de um rádio
prestes a ser desligado
antes de dormir.

Como hipnotizar anzóis no tempo
Enfeitice
peões de mulheres
fantasiadas de nós
em chuvas
musicadas ao avesso.Trance
o destino
bem acima
da última curva
do vento.

Liberte
o tropel de
tangos
das vertigens
adormecidas
em sonetos.

E por último
faça um agrado,
como um sopro divino,
aos ogros verdes
da saudade.

Se tudo
resultar em nada,
descanse os olhos
nas estrelas
aliviadas de brilho
sem respostas.

 

Carla Andrade Bonifácio Gomes é mineira de Belo Horizonte. Está em Brasília desde 2000, e atua como jornalista e poeta. Acabou de lançar o megamíni Voltagem, pela Editora 7Letras. A mesma editora publicou a segunda edição de “Artesanato de Perguntas”, no final de 2013, livro que, em sua primeira edição (DROP Editora), recebeu recursos do Fundo da Arte e da Cultura (FAC) do Governo do Distrito Federal. Seu livro de estreia “Conjugação de Pingos de Chuva” (Editora LGE), de 2007, também foi contemplado pelo FAC.