4 de fevereiro de 2016

A ÚLTIMA ESTRADA

 

Há algum tempo, eu disse no facebook que uma mulher havia previsto para mim um acontecimento que poderia ter duas interpretações completamente opostas. Disse ela que via muitas pessoas ao meu redor, reunidas, curiosas. A possibilidade boa é caso o meu próximo livro seja um sucesso: muita gente junta em meu entorno significaria, naturalmente, uma noite de lançamentos bem-sucedida. A outra possibilidade, disse na minha postagem, seria se eu morresse atropelado, numa viagem recordatória dos vários momentos ao longo da vida dos quais lembro de ter visto alguém atropelado e morto, quando parece que, ainda que seja numa região inóspita, pessoas brotam da terra para irem ficar ao lado do defunto, uma cena que sempre considerei bizarra e que jamais compreendi muito bem.

 

Lembrei então de alguns escritores que tiveram esse fim; ou guiando veículos, ou enquanto eram passageiros ou, ainda, quando um motorista imprudente os encontrou no meio do caminho (ou ainda, aparentemente, quando os escritores encontraram o veículo), o que só nos faz lembrar o quanto a vida é frágil. Para isso, na verdade, basta lembrar também de sua inevitabilidade: todos os anos, em algum momento, passamos pelo dia e mês do ano em que, mais adiante, iremos morrer, como um lembrete misterioso de que vivemos sob o inevitável calendário da vida, e o irreprochável e enigmático calendário da morte.

 

Vejamos alguns exemplos.

 

Italo Svevo foi um escritor italiano que escreveu o hoje clássico A consciência de Zeno, livro que ele publicou por conta própria em 1923 e que foi completamente ignorado pela crítica e pelos leitores da época. A obra, que mostra o interesse do autor pelas teorias de Freud, é narrada através das memórias de seu protagonista, que as escreve por insistência do seu psicanalista. O romance de Svevo estava fadado a permanecer no limbo, não fosse pelos esforços de ninguém menos que James Joyce, que ajudou a obra a ser traduzida para o francês e, ao ser publicada em Paris, ganhou rasgados elogios da crítica, o que fez com que o romance executasse o caminho de volta, finalmente ganhando notoriedade em seu país de origem. Svevo era um fumante inveterado, o que fez com que sua saúde piorasse rapidamente após o acidente de carro que sofreu em 13 de setembro de 1928. Tal como o protagonista de seu mais notório romance, Svevo pediu, no leito de hospital, “um último cigarro”, o que lhe foi negado, ao que ele respondeu: “Este seria de fato meu último cigarro”. Italo Svevo morreu horas depois.

 

Vinte e um anos se passaram até que Margaret Mitchell, a famosa escritora de ... E o vento levou, tivesse também a sua hora. Ela havia publicado seu único romance em 1936, que ao final de um ano já havia vendido mais de um milhão de cópias e cujos direitos para o cinema haviam sido adquiridos pela então impensável quantia de 50 mil dólares. Ela aparentemente havia desistido de escrever ficção e vivia da mina de ouro obtida com seu primeiro e único livro. Entretanto, como era comum na época, Mitchell se correspondia muito através de cartas, que escreveu durante toda a vida. Nestas cartas, há relatos de doenças e acidentes, ossos quebrados e colisões, sejam com os móveis dentro de casa ou com, num aparente exercício de futurologia, carros. Margaret Mitchell parecia ter uma tendência a ser desajeitada, o que poderia ser também uma tendência ao desastre. E foi. Na noite de 11 de agosto de 1949, Mitchell e o marido iam assistir a um filme quando, ao cruzar a rua sem olhar – um hábito frequente da escritora, segundo relatos – ela foi atropelada por um taxista que estava de folga. Morreu no hospital cinco dias depois, sem recobrar os sentidos.

 

O escritor e filósofo algeriano Albert Camus, que deu ao mundo obras como A peste, A queda e talvez o mais famoso de todos, O estrangeiro, e recebedor do Prêmio Nobel de Literatura aos 44 anos, morreu menos de onze anos depois de sua colega de escrita mencionada acima. Camus estava na região de Provence com seu amigo e editor, Michel Gallimard, e tinha a intenção de voltar a Paris de trem, com a esposa e os filhos. De última hora, porém, resolveu aceitar o convite de Gallimard, que ofereceu-lhe uma carona; carona esta que se mostrou fatal. Era apenas o quarto dia de 1960 quando Camus entrou no carro com seu editor, a esposa deste e sua filha. Ao dirigir por um trecho molhado da pista, Gallimard perdeu o controle do carro e colidiu com violência contra uma árvore. Albert Camus, que um dia dissera que das muitas formas de morrer, falecer num acidente de carro era a mais absurda, morreu no local do acidente. Michel Gallimard morreu dias depois, no hospital. Sua esposa e filha, embora tenham sido lançadas para fora do carro (cinto de segurança não era lá um item tido como indispensável naqueles tempos...), sobreviveram.

 

Pulemos duas décadas e chegamos, então, a Roland Barthes, um homem que foi muitas coisas, e em todas elas, aclamado. O homem era filósofo, teórico, linguista, crítico e semiólogo. Suas ideias ajudaram no desenvolvimento de diversas escolas teóricas, como o da própria semiótica e o estruturalismo. Seu livre pensar era ligeiramente obscurecido por uma relação de completa devoção com a mãe, com quem viveu durante 60 anos. Quando ela morreu em 1977, aos 85 anos, Barthes perdeu a razão de viver, tornou-se um homem perdido no mundo. Em 25 de fevereiro de 1980, Barthes foi atropelado por uma van de uma empresa de lavanderia enquanto caminhava para casa. Sofreu afundamento no peito e teve diversos outros tipos de ferimentos. Morreu um mês depois de ter sido hospitalizado. Algumas fontes sugerem que seu atropelamento pode ter sido, consciente ou inconsciente, um suicídio, por ele nunca ter se recuperado da perda da mãe, mas essa hipótese nunca pôde ser comprovada.

 

Outro filósofo que morreu por conta de acidente envolvendo um veículo foi o tcheco naturalizado brasileiro Vilém Flusser, onze anos depois de Barthes. Flusser, que morou no Brasil e foi professor da Universidade de São Paulo até meados da década de 70, quando se mudou para a França, onde continuou atuando como pensandor, escrevendo livros e dando palestras. Foi numa viagem a sua Praga natal, depois de mais de cinquenta anos, que o retorno ao nada aconteceu: Flusser havia ido lá dar uma palestra. Ao final, perto da fronteira com a Alemanha, o acidente fatal, que matou o filósofo aos 71 anos.

 

Oito anos depois, uma situação de quase morte que merece ser contada.

 

Imagine um lugar geralmente calmo, tranquilo, uma estrada asfaltada, daqueles asfaltos bonitos de estradas que costumamos ver em filmes norte-americanos (porque é justamente lá onde estamos agora, certo?) ladeada, à esquerda e à direita, por árvores, porque afinal é tudo que se vê para onde quer que giremos o pescoço. E à frente, a estrada, onde, a intervalos não muito longos, passa um e outro veículo. No acostamento, Stephen King, o escritor, mais notadamente, de livros de terror, faz sua caminhada de todas as tardes, sem saber que a possibilidade de morte vinha depressa sobre rodas em sua direção. Atazanado por um cachorro que não parava de latir na parte traseira de sua minivan, o motorista que nesse momento dirigia pela estrada em cuja lateral caminhava King faz movimentos bruscos e grita dentro do veículo, exigindo que o cachorro pare de fazer barulho. Por algum motivo, suas ordens dão em nada. Stephen King continua fazendo sua caminhada, ignorando o carro que se aproxima mais a cada segundo. O motorista da van, atarantado com o animal, começa a desviar o olhar da estrada e, com isso, seu carro começa a fazer ziguezagues. Um carro passa perto de King, que começa novamente a ouvir apenas o som dos próprios passos. Quando o quase silêncio foi cortado novamente, a van já estava em suas costas e ele foi lançado para o alto, muitos metros adiante, onde seu corpo encontrou o solo. O resultado disso foi pulmão paralisado, múltiplas fraturas nas pernas (que cogitaram amputar), lacerações na cabeça e costelas quebradas. O escritor foi encontrado por um policial da polícia rodoviária que patrulhava pela região e levado de helicóptero para um hospital. King passou dias na UTI e anos em reabilitação, que o levaram a considerar a possibilidade de parar de escrever, porque ele não aguentava as dores físicas deste período e deste processo. Mais de quinze anos depois, Stephen King, pode-se dizer, é um homem recuperado, apesar das sequelas emocionais e físicas.

 

Em 2001, foi a vez de W. G. Sebald, um escritor alemão de reputação tão notável, que era constantemente um dos autores mais considerados a ganhar o prêmio Nobel de Literatura por suas obras relativas a memória e a perda da mesma (tanto pessoal quanto coletiva) e a decadência; temas estes relacionados a questão da Segunda Guerra e do Holocausto. Nesse contexto de uma pequena mas significativa produção literária, Sebald, agora morando na Inglaterra, dirigia com sua filha como passageira quando subitamente sofreu um aneurisma. O escritor perdeu o controle do veículo, invadiu uma pista com fluxo contrário e colidiu de frente com um caminhão. Ele morreu na hora, mas a filha sobreviveu ao acidente. Tempos depois soube-se que o aneurisma já o tinha matado, de modo que o caminhão já bateu de frente em um cadáver.

 

Para concluir, um caso tipicamente brasileiro. O escritor cearense José Alcides Pinto, homem de intensa produção literária e frequentemente chamado de “autor maldito”, uma espécie de pecha que sempre o acompanhou, por fazer uso de temas que tratam daquilo que nos torna humanos e daquilo que nos leva às desgraças. Sexo, morte, infortúnio e pequenez do ser humano eram os elementos de sua obsessão. Aos 84 anos e ainda um homem muito ativo, José Alcides, morador do Centro de Fortaleza, saiu de casa com envelopes na mão contendo exemplares de livros de sua autoria, que pretendia enviar a amigos. Ao cruzar a rua, foi atingido por uma moto em alta velocidade. O impacto da colisão e da queda que se seguiu resultou em politraumatismo. O escritor agonizou alguns dias em um hospital de Fortaleza, mas não resistiu.

 

Como se pode ver, a lista é longa e poderia se prolongar com muitos casos mais, mas por ora, esses bastam. Não existem estatísticas que digam se escritores são mais ou menos propensos a morrer no trânsito em relação aos outros cidadãos, mas o certo é que exemplos abundam. E quanto à vidente? Agora é esperar para ver se meu nome se somará aos demais.