28 de agosto de 2015

Quando eu li Goethe

Ou, poderia dizer, quando eu vivi Goethe. Enfim, quando fiz isso parecia me reportar a um mundo inteiramente desconhecido. Ninguém conseguiu me dar uma receita ou um aviso sequer de como seria sentir a literatura do autor do Fausto. Lukács tentou, com muita firmeza e boa vontade. Bakhtin fez o mesmo: tentou. O certo é que eu não comecei do princípio. Não li os sofrimentos do jovem Werther. Fui logo “de com força” (como dizemos aqui pelo Ceará), com aquela pretensão de começar pelo topo e li Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Fiquei desnorteado, abismado e maravilhado ao mesmo tempo durante toda a leitura. Já esperava uma nova pancada quando me debrucei sobre as Afinidades Eletivas, mas ela não veio assim bruscamente. Veio de luva, de pelica, veio suave a pancada.

Edouard, Charlotte, Otilie e Otto – o capitão foram-me apresentados com a argúcia de uma bordadeira, tecendo os fios sem deixar os nós serem percebidos. Toda a primeira parte deste romance se desenvolve nos detalhes quase óbvios de uma trama quadrangular aberta, sem suspense. A possibilidade de um casamento destruir-se, perder-se na intromissão de terreiros e quartos é esclarecida em praticamente todas as falas. Mas aí é que está! O romance segue seu fio narrativo com uma suavidade tão terna, num aparente caldo monológico (só aparente) que mesmo sabendo que as afinidades eletivas fazem unir-se A e C, B e D não há um momento que não nos surpreendamos com um beijo roubado na saída do barco, num amor opressivo de uma espera na sala de estar.

A força de Goethe parece residir na capacidade de guia transparente e translúcido ao mesmo tempo. Há um destaque ainda nas palavras do pedreiro que, qual bordadeira e romancista, compreende todos os detalhes de seu trabalho e sabe muito bem seu papel:  “O trabalho do pedreiro exposto agora às vistas de todos, mesmo que não seja realizado em surdina, destina-se a ficar oculto. A fundação, cuidadosamente implantada, é soterrada, e mesmo os muros erguidos à luz do dia não trazem à lembrança o nosso trabalho.” (2014, p 89)

Fica ainda a cargo do pedreiro, no momento de seu triunfo desnudar uma vez mais de modo suave a própria urdidura da narrativa: “Poderíamos, sem mais rodeios, depositar esta pedra fundamental, que por meio de seu ângulo determina o canto direito do edifício, com seu formato retangular garante sua regularidade e com sua horizontalidade e verticalidade assinala o nível e o prumo dos muros e das paredes. Ela se assentaria pelo próprio peso, mas nem por isso lhe negaremos a cal, a substância que lhe dá liga. Pois, assim como os laços da lei aproximam ainda mais as pessoas que, por uma inclinação natural, já se sentem mutuamente atraídas, também as pedras, cujas faces se harmonizam, unem-se de modo mais estreito pelo emprego dessa força aderente. (2014, p. 89)

Terminar assim, com as palavras de Goethe, é bem melhor que com as minhas...

 

Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

GOETHE. As afinidades Eletivas. Introdução: R. J. Hollingdale; Tradução: Tercio Redondo. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2014.