17 de agosto de 2015

Quando eu li Marcos Rey

Quando se está crescendo, toda transformação é quase que necessariamente um susto. Ninguém passa incólume às mudanças engendradas nem sempre tão secretamente pelo corpo, ou urdidos pela mente, que ora nos diz uma coisa, ora outra, completamente diferente. E no meio de tudo isso, o espanto, as voltas que a cabeça dá tentando compreender a si mesmo e aos outros – tarefa hercúlea quando se está na transição entre a criança e o adolescente caminhando para tomadas mais sérias de decisão na vida.

Marcos Rey surgiu para mim no momento em que eu atravessava essa ponte. Foi lá pelos doze anos, não mais, talvez um pouco menos, que o grande mestre da escrita paulista caiu em minhas mãos. O livro – hoje penso que não poderia ser outro – era O mistério do cinco estrelas, em que ele apresentava aos leitores pela primeira vez Léo, Gino e Ângela, um trio que daria tão certo que voltaria em outros livros juvenis, que o autor publicou de 1981 até 1997, um por ano, numa sucessão que só aumentava o ritmo de vendas e o sucesso entre os jovens leitores daquele período.

Naquele tempo, tudo o que um pré-adolescente deseja em se tratando de literatura, nem que fosse em segredo, é que o livro o convencesse a gostar de ler. Depois de serem obrigados a ler Lima Barreto, Aluísio Azevedo e José de Alencar aos montes, e de ficarem quase convencidos que literatura é um monstro que tem que ser destruído na prova que trará perguntas sobre esses malditos cânones, quando um jovem pegava num livro para além dos muros ou obrigações escolares, o desejo atávico era sempre este.

Para a minha sorte, conheci Marcos Rey indo à biblioteca da escola. O próprio autor conseguiu viver apenas da venda de livros, bem como ficar famoso ao ser adotado nas escolas mais vanguardistas, tornando-o uma verdadeira façanha editorial, ao transformá-lo de leitura obrigatória a leitura prazerosa. Minha escola não tinha nada de vanguardista, mas a biblioteca tinha os livros, provavelmente recebido de doação dos representantes da editora, e tinha alunos curiosos, o que dá quase na mesma coisa.

O mistério de cinco estrelas tem uma narrativa cativante, com personagens ágeis e bem construídos, completamente diferentes entre si; além de uma trama que não subestima a inteligência do leitor. Era impossível largar aquele curto romance policial. Lê-lo era um enorme prazer, e eu o fazia sempre que tinha qualquer minuto disponível.

O percurso natural foi feito. Em rápida sequência, li outros títulos que também ficaram famosos, como Um cadáver ouve rádio, Enigma na televisão (meu favorito), Sozinha no mundo e Bem-vindos ao Rio.

Era, então, o momento de fazer aquilo que eu gostava de fazer com uma certa regularidade: escrever para o escritor, contando da minha experiência de ler sua obra, falar de alguns aspectos narrativos e do poder transformador da literatura. Para a minha surpresa, Marcos Rey respondeu. E continuava respondendo, sempre muito atenciosamente. Um dia, resolvi que queria ir para além daquele universo repleto de adolescentes, e ler um de seus livros para adultos. Peguei Memórias de um gigolô, porque achei o título intrigante. E, tal como em sua literatura juvenil, não consegui largar o livro, embora ele estivesse me levando para lugares onde eu nunca estivera antes – tanto em termos de trama como em profundidade narrativa – e eu tinha que dizer isso a ele, claro. Para minha surpresa, recebi dele uma confissão: “apesar do sucesso com meus livros juvenis, que mantém minha vida confortável, é dos livros para adultos que eu gosto mais”. E o sucesso em vendas fez com que ele tivesse mais liberdade para escrever e publicar outros livros para adultos, inclusive um que é uma verdadeira obra-prima da literatura brasileira: O último mamífero do Martinelli, um dos romances mais bem construídos e fascinantes da nossa literatura contemporânea.

Marcos Rey soube, como nenhum outro autor de seu tempo, explorar o cenário urbano – mais notadamente, São Paulo, o que, de certa maneira, não deixa de ser a representação de qualquer metrópole – com todas as suas idiossincrasias, suas pessoas em dinâmico movimento, as imperfeições de vivermos em tempos que nos devoram, o caos social refletido em nossas atitudes, em nossa natureza, e como nos deixamos nos envolver pela força implacável do mundo que nos cerca.

Esnobado pela crítica dita séria, numa época em que, embora tivéssemos escritores de livros infantis e juvenis famosos, a literatura para estes leitores era tida como menor (lamentavelmente, ainda estamos no processo de compreensão do que é termos uma literatura portentosa dirigida a crianças e adolescentes. Mas já melhorou muito, na última década e meia, e estamos caminhando para um discernimento claro no tocante a essa questão) Marcos Rey foi ídolo e referência para muitos daqueles jovens que hoje são bons leitores.

Lembro-me com alegria e nostalgia das muitas noites que passei lendo livros seus, a ponto de, no dia seguinte, ir para a escola quase como um zumbi, de tanto sono, mas com a sensação de que eu havia passado a noite no melhor dos mundos, que era o universo de Rey. Estar dentro de uma de suas obras era a certeza de que, enquanto leitor, eu teria não apenas surpresas e reviravoltas, mas teria a mente chacoalhada de alguma maneira, de que, naquelas páginas, eu faria amigos, eu conheceria novos aspectos da vida e não seria, portanto, a mesma pessoa, ao fim da leitura. E eu nunca era. Lê-lo sempre me deu vontade e coragem para descobrir outras obras, outros escritores, e a certeza da majestade da vida, que insiste em imperar.

É bom saber que sua obra não morreu com seu falecimento em 1999. Marcos Rey continua vivo, editado, sendo lido em escolas e conquistando novos leitores para o século que, por pouco, ele não alcançou. E isso é muito, porque o confirma como aquilo que ele já é: eterno.