10 de agosto de 2015

Quando eu li Valter Hugo Mãe

Quando li valter hugo mãe, assim mesmo em letras minúsculas, conforme o primeiro valter apreciava ser chamado, parece que finalmente compreendi a expressão "economia do texto". Mas o que quero dizer com primeiro valter? Estou falando a respeito do autor da tetralogia de romances o nosso reino, o remorso de baltazar serapião, o apocalipse dos trabalhadores e a máquina de fazer espanhóis. Embora as histórias sejam autônomas, o laço que une essas narrativas é a identidade portuguesa, tema discutido por quatro diferentes pontos de vista, isto é, quatro narradores visitam a vida histórica e social de Portugal, sendo o primeiro uma criança, em o nosso reino; o segundo, um jovem, em o remorso de baltazar serapião; o terceiro, uma mulher de meia idade, n'o apocalipse dos trabalhadores; e o último, um idoso, n'a máquina de fazer espanhóis. Após essa estreia contundente na prosa, especialmente aplaudida pelo público brasileiro e com direito ao Prêmio José Saramago em Portugal, surge um segundo Valter, agora em maiúsculas, a inaugurar uma nova fase, com os romances O filho de mil homens e A desumanização.

Esse segundo Valter parece mais preocupado com questões pontuais e humanísticas do que exatamente com o passado português, e agora também passa a escrever em maiúsculas. Se antes ele alegava escrever em minúsculas para "limpar" a língua, reduzir sinais gráficos, não deixar uma letra levantar a cabeça acima da outra, ao fim da tetralogia essa preocupação desaparece, mas esse detalhe não é relevante se não fosse a tamanha curiosidade que o fato suscitou entre os leitores. Mas o que valter ou Valter, não importa, trouxe ao limite, a exemplo de muitos outros autores, foi o não desperdício do tempo da leitura, a palavra poética mas exata, sem excessos, sem descrições desnecessárias à trama, sem uma única frase solta que não seja literatura em plena forma. Essa virtude não é exclusiva sua, claro que não, mas confesso que valter foi o primeiro a torná-la nítida para mim. Posso dizer que reaprendi a escrever com ele. Talvez não tenha sido valter exatamente, é possível que algo tenha despertado dentro de mim, como leitora.

Penso que o esforço de ler parágrafos longos, com uma pontuação não convencional, com diálogos inseridos no texto, ambíguos, tudo em minúsculas, acabou por me inserir de tal forma na história, que me vi embrenhada em suas redes, e esse advento, é complexo explicar, me empoderou como leitora, fazendo-me perceber que nada, nenhuma linha estava ali por acaso. E foi assim que me vi, de repente, estudando sua obra, notadamente a máquina de fazer espanhóis, preparando um projeto de pesquisa para o mestrado. Alguns anos e leituras depois, descobri o sentido de muitas daquelas palavras, do tempo no livro, as datas, todas com precisão absoluta: até o nascimento do autor esconde-se num momento de clímax, como não poderia deixar de ser.  Assim, eu compreendi que a grande ambição do texto literário está no tempo. E o desperdício não pode se dar com o que já sabemos, mas com a imprecisão, a instabilidade, o subversivo, a interrogação, o vento e a poesia.

 

Paula Fábrio é autora do romance "Desnorteio" (Ed. Patuá), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013 (categoria estreante), e seu Mestrado (Letras - USP) é sobre a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe, e Terra estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas.