4 de maio de 2015

Quando eu li Cacaso

Eu poderia escrever sobre o Manuel Bandeira, já que tantas vezes declarei que foi o meu encontro por acaso com o livro azul Estrela da vida inteira, que me colocou todas as questões primárias para um dia almejar receber a alcunha de poeta. Sou capaz ainda hoje de recitar qualquer poema ou fragmento de poema de Manuel Bandeira, basta você dizer o título ou um verso. No Nordeste, é assim, aprendemos decorando os mestres, nos alfabetizamos através da imitação e da repetição, pedagogia sofisticada chegou por aqui só há pouco tempo e eu já tenho 26 anos, estudei a vida inteira em escola pública, por consequência nunca fui dado a esses luxos.

Devido a essa “deficiência” literária, acabei tomando gosto pelos versos curtos, pelos fragmentos, pela estranheza e boniteza de uma palavra, lia um romance inteiro, a história me comovia, mas eu ficava mesmo era enganchado numa pequena frase, numa linha; lia Machado de Assis, mas ficava preso nos “Olhos de cigana oblíquos e dissimulados, olhos de ressaca”. Literatura na minha vida é uma busca de sensação, me agarro num verso e enfio ele na minha carne, fazendo sangrar, é uma sensação rara.

Também sou dado a ler em voz alta, escutar o jeito da palavra dita, sou viciadinho em música, acho bonito ver gente recitando, gente lendo pra mim, sou capaz de fazer café e cuscuz pra quem vier aqui passar alguns bons minutos lendo. Numa dessas, escutei da boca de alguém o poema:

Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!

Ah se pelo menos o coração não tivesse

[memória!
Como seria menos linda e mais suave

minha história!
Ao final, a pessoa disse: Cacaso.

A primeira reação foi, porque meu nome não é Cacaso, dizer que nome era lindo, meu povo. Corri na Lan House e fui pesquisar o sujeito, difícil de achar, não tinha quase nada sobre, quase nada mesmo, mas achei no meio da pesquisa um livro organizado e prefaciado pela Ana Buarque de Holanda, 26 poetas hoje, sendo que o hoje dela é a década de 70/80. Nesse livro, pude conhecer mais profundamente Leminksi, Waly Salomão, Francisco Alvim, e o objeto da minha pesquisa, o Cacaso, a poesia marginal em uma antologia, e que antologia; esses escritores ainda estão na minha lista de poetas mais queridos.

Mesmo assim ainda era pouco, eu tinha um cadastro na biblioteca pública governador Menezes Pimentel, e foi lá que eu achei o Mar de mineiro, e esse projeto aqui é pra gente falar o que sentiu quando leu um determinado autor, pois aí vai:

Fiquei sentado feito besta, numa das mesas do setor de obras gerais da biblioteca, relendo e lendo cada um dos poemas, a sensação que eu tinha era que esse cara só devia era estar de brincadeira com a gente, é como se cada um dos poemas fossem garotos nus, bonitos, necessários e eu queria todos pra mim, sem distração, sem paetês, sem adornos, tal qual vieram ao mundo, porque era só disso que eles precisavam, um corpo nu.

Eu já tinha lido uns poemas curtos do Leminski, e também já havia lido alguns do Manoel de Barros, mas esses eram totalmente diferentes, os do Leminski, maravilhosos, mas que, na minha opinião de humilde leitor de 15 anos, ficava mais na linguagem, até porque na época eu não conhecia profundamente a obra dele; os do Manoel, era aquela selva primitiva das palavras delirantes, lindo, magnífico, mas tão magníficos que eram um lugar que eu só podia ver e delirar, mas nunca estar dentro. Já os poemas do Cacaso, repito, eram como garotos nus, queria estar com eles e parecia que eles foram feitos para estar comigo.

O cara tinha humor, e tinha delicadeza, falava da solidão e de sexo casual, com a mesma potência, arrancava um risinho da minha boca e uma lágrima dos meus olhos, e os poemas. A maioria tinha 4, 5, 6 versos; o maior, que dá título ao livro, confesso, da primeira vez nem me interessei de ler. A primeira vez que eu li Cacaso percebi que o poema precisava ser de uma poesia atômica, principalmente no meio da cidade, principalmente nesse século 21 que acabava de chegar, cheio de internet e filmes em três dimensões, o poeta talvez tivesse só uma chance, era um round com o leitor, se ele não acertasse uma direita bem colocada talvez perderia a oportunidade de ter mais alguns minutos de atenção.

É injusto, eu sei, a leitura requer tempo e dedicação, toda uma aura e envolvimento para chegar no assunto, mas nem sempre temos esse tempo, “tão cruel, mas é a vida”. Acredito muito na potencialidade de escritores como Cacaso, por causa da poesia dele, nas minhas mediações de leitura, já conquistei alguns leitores de poesia. Sempre que volto aos poemas dele, fico impressionada de como eles não me cansam, mesmo sendo pequenos sempre têm uma nuance que não havia percebido antes.

Vou aproveitar e fazer uma confissão, duas, na verdade, depois do Cacaso passei a escrever micropoemas, o terreno era propício porque tinha acabado de nascer o twitter, e comecei a distribuir meus poemas em formato de zines, que eu xerocava e vendia a um real, participei até de uma exposição nacional no SESC de São Paulo com um dos meus micro. Muitas vezes acho os micropoemas a melhor coisa que escrevo, tenho um carinho especial por eles. Esse ano vou publicar um livro só deles, lógico, tudo isso por causa do Cacaso. Muitas vezes eu fico esperando que algum outro poeta igual a ele, de repente, me pegue desatento e me surpreenda.