24 de abril de 2015

Quando eu li Leminski

As aulas de literatura da escola eram sempre menos interessantes do que a própria literatura. Mas como eu sabia disso? A maioria dos meus colegas dava-se por (in)satisfeita, numa boa. Ler, fazer trabalho e prova, tudo bem. Eu sabia que não era bem só isso porque eu lia. Eu lia o que não pediram, não listaram, não obrigaram. Eu lia porque achava que ler era bom. E não porque meu cérebro fosse mais ágil ou porque fosse ampliar meu vocabulário (este era um argumento comum àquela altura), mas porque eu simplesmente achava gostoso. Simples assim. Eu lia coisas fantásticas. Então eu sabia que as aulas de literatura omitiam de mim e de nós um universo imenso. Mas a maioria dos meus colegas não estaria, nunca, interessada em saber mais sobre isso. E seguíamos em frente.

Num ano qualquer, que deve ter sido, salvo engano, no primeiro do Ensino Médio (acho que ainda era Segundo Grau, na minha época), mudaram a apostila de literatura da escola. Eu costumava ser curiosa quanto a esse universo, então foi com ansiedade que abri ali umas páginas, mirei a capa, pensei no que seria o ano, incluindo as omissões. Até onde ia a literatura, segundo as apostilas? 1922? 1945? Não me lembro. Mas o mundo presente jamais seria abordado. Quem são os autores do presente?

Bem, estávamos no início dos anos 1990. Essa informação temporal é importante para a compreensão do que aconteceu comigo e, depois, com muita gente, depois daquele ano. E então, numa sala de aula de Belo Horizonte, em uma boa escola pública, no início de qualquer ano da década de 1990, uma professora entrou em sala, de apostila nova embaixo do braço, e pediu que saltássemos umas páginas. Não lembro se disse que era bobagem ou se achou dispensável. A maioria dos meus colegas saltou. A maioria ficou quieta, mas no fundo pensou “oba!, umas páginas a menos pra ler”. Mas eu, não. Eu achei um desperdício. Daí eu corri lá nas páginas saltadas para ver o que rolava, enquanto a professora se enrolava em qualquer coisa. Ou enquanto a turma se ajeitava no saltitar das páginas. E pow! Estava lá um poema assim: “Acordei bemol/ tudo estava sustenido/ sol fazia/ só não fazia sentido”. O cara que assinava era Paulo Leminski, de quem eu nunca ouvira falar. Ele ainda não era autor de livro do vestibular e nem caía em prova. Ainda não tinha coletânea best-seller na Companhia das Letras nem nada. Não tinha booktrailler com a voz do Arnaldo. Nada. Ele era um cara quase desconhecido, mas que já se insinuava pelas apostilas de colégio. Acho que ali não deve ter nem rolado autorização, direito autoral, será? Não sei. Só sei que senti uma porrada muito grande naquele instante. Muito grande mesmo, quase sem ar. Pensei: mas isto também é poesia? Como é que ninguém me avisou? Como pode uma professora omitir isto de nós desta maneira? Não é possível! E fiquei ali lendo aquele poema, pensando na minha banda de rock, nos bemóis e sustenidos. E depois lavrando planos pra comprar os livros do Leminski. E não foi fácil.

O Paulo Leminski não era fácil de achar. Consegui comprar logo alguns livros, editados pela Brasiliense, acho. Distraídos venceremos e La vie en close. Adotei o Distraídos em uma escola, uns tempos depois, e só levei esculacho em uma reunião de pais. Tem condição? Depois um amigo me conseguiu o Caprichos e relaxos e os livros de crítica. Bom, daí em diante fiz a coleção. Mas assim, sempre com mais dificuldade do que teria hoje. Só que eu achei o Paulo Leminski essencial pra eu mudar meu paradigma do que era poesia. Não é nem questão de ser ótimo ou não ser; é questão de mudar o jeito de encarar as coisas. Até ali, poesia pra mim era uma coisa muito mais restrita do que poderia ser. Foi fundamental ler aqueles versos e encontrar uma voz que fazia muito sentido pra mim, que era quase contemporânea, que tinha uma existência no meu mundo. Foi um corte importante na minha vida de leitora e de escritora, algo que vim a me tornar mais tarde, sem jamais abandonar a influência das leituras que fiz do Leminski.

Hoje é clichê falar em Leminski. Hoje muita gente o conhece, compra, consome, cita, usa camiseta. Isso é bom. Eu gosto quando a literatura sai pra passear na rua. Hoje falar que teve influência do Leminski soa banal, soa caricato. Dependendo da situação, pega mal. Enfim. Não estou nem aí. Só sei que ler versos do Paulo Leminski foi avassalador quando eu não tinha nem 20 anos. E acho que pode continuar sendo, pra uma galera que continua estudando a literatura na omissão, especialmente nos poetas mais recentes.

É claro que não cabe tudo no currículo da escola. Não dá pra garantir que o mundo inteiro da literatura vá ser lido e discutido na escola. Essa tarefa seria menos ingrata se os pais e a família e os amigos também lessem bastante literatura e poesia, mas não rola. Não é assim que funciona. O currículo é uma seleção, uma edição que alguém faz. E nem sempre entram os autores que a gente prefere. Uma pena. Por outro lado, nem sempre o Leminski será saltado. Alguém vai desobedecer a professora e o currículo para dar uma espiada no que não foi dito. E vai achar chocante! Que assim seja.

 

*O título original que a autora deu para o texto é Só não fazia sentido ou O que rolou com Paulo Leminski. Mas para manter uma constância em nossos títulos, preferimos deixar como está no topo do texto.