3 de abril de 2015

Quando eu li Clarice Lispector

Quando eu li Clarice Lispector, pela primeira vez, ainda era criança e na escola frequentemente era recomendado aos alunos a leitura da série de pequenas histórias de grandes autores "Para gostar de ler". Num desses livros eu esbarrei com a história da miquinha Lisete e fiquei intrigado com a maneira com que aquela mulher narrava de forma tão corajosa, se assim posso dizer, um assunto tão delicado para as crianças: a morte. Lembro que  fiquei experimentando aquela sensação, a perda, a saudade.

Aquela história me provocou uma série de sensações, e foi a partir daí que fiquei curioso em conhecer mais coisas dessa mulher tão misteriosa.

"No dia seguinte o veterinário telefonou avisando que Lisete tinha morrido durante a noite. Compreendi então que Deus queria levá-la. Fiquei com os olhos cheios de lágrimas e não tinha coragem de dar a notícia ao pessoal de casa, Afinal, avisei e todos ficaram muito tristes, muito tristes. De pura saudade, um dos meus filhos perguntou:

– Você acha que Lisete morreu de brincos e colar?

Eu disse que tinha certeza que sim, e que, ela mesmo morta continuaria linda."

Eu já gostava de ler, já tinha lido alguns outros autores, mas devo confessar que assim que esbarrei com a literatura da Clarice fiquei hipnotizado.  A linguagem dela me acertava em cheio, não sei direito o momento em que me dei conta do tamanho da solidão e do desamparo que àquelas linhas traduziam de uma mulher extremamente entregue, Clarice para mim se tornou influência. Não encontrei até hoje algum escritor que escreva com tamanha coragem do que ela. É claro que li outros vários escritores, alguns muito bons, outros nem tanto, mas a maneira com que era arrebatado pela linguagem daquela mulher era impressionante, muitas vezes pensei: eu queria ter escrito isso.

Lembro que uma vez, ainda na oitava série, resolvi participar de um concurso de contos da escola. Eu não gostava muito que as pessoas lessem o que eu escrevia, sempre gostei de escrever, mas achava tudo muito explícito, era como se alguém me visse saindo do banho sem toalha, muita intimidade. Tomei coragem e me inscrevi. Na tarde da divulgação dos textos premiados, o auditório do colégio lotado e eu ali, sentado, sem a menor esperança de nada, um medo enorme de me expor, e quando o resultado saiu, a perna travou os movimentos, fui premiado com o melhor texto da escola.

Para a minha surpresa, entre o troféu, alguns outros mimos, estava também um livro intitulado "Um sopro de vida".

E adivinhe de quem era a autoria?

Clarice Lispector!

Fiquei impressionado, larguei o troféu e os outros brindes de lado e mergulhei aos catorze anos na leitura daquele livro.

Posso confessar, não entendi nada! Fiquei confuso.

Clarice era muito profunda, e eu um adolescente tentando encontrar os caminhos. Insisti mais uma vez e com o tempo, fui percebendo, ela não era uma escritora qualquer, ela era simplesmente Clarice Lispector, com todas as suas interjeições, os sentimentos do mundo e principalmente, revelando a alma da personagem. Cada livro que eu lia, a mesma perguntava pairava no ar: o que havia com esta mulher, de onde todas essas dores, dúvidas e incertezas brotavam, que faziam dela, aos meus olhos, uma mulher extremamente solitária e amargurada?

Passaram por mim muitos livros dela, que hoje guardo na estante de casa como um talismã, toda vez que sinto vontade, torno a ler algum livro de Clarice, as biografias, os livros de entrevistas. Clarice exerce em mim uma espécie de hipnose mesmo, fascínio. E não tenho o menor pudor em dizer: adoraria ter escrito o que ela escreveu, e mais, ter esbarrado com ela por aí.

Tudo em Clarice me encanta.

Fico indignado quando vejo postagens de textos inferiores que são atribuídos à ela nas redes sociais, as pessoas, se realmente conhecessem a literatura de Clarice Lispector, jamais aceitariam o que as redes sociais estão fazendo com a arte da melhor escritora brasileira. Sim, para mim, a melhor!

Clarice já foi chamada de hermética, melancólica, mas a sua literatura está até hoje encantando muitos leitores no mudo inteiro e seu estilo único é produto de muitas teses e pesquisas, por isso e muito mais, Clarice na veia!

"Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de grandioso, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud. É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, frequentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na Livraria Cultura, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa?"

(Caio Fernando Abreu, "Carta ao Zézim", em "Caio Fernando Abreu-Cartas" )

 

por Alex Andrade