27 de março de 2015

Quando eu li Rubem Fonseca

A imagem é forte, mas não é exagero afirmar que ler Rubem Fonseca pela primeira vez equivale a um estupro literário.

Mas me adianto.

Fui violentado por um professor da faculdade. Não apenas eu. Numa turma de 25 alunos, desconfio que mais da metade passou por essa experiência com ele.

Foi por causa desse professor que todos passamos a ler Rubem Fonseca, e dedicar-se à leitura da obra deste autor pela primeira vez é do grupo das violências literárias altamente significativas em uma vida. Refiro-me aqui à tensão, ao calafrio, até mesmo ao medo que nos impõe a primeira leitura de alguém com a envergadura de Fonseca. Quando me deparei com sua obra pela primeira vez, eu, que até então não era leitor de algo sequer parecido, senti-me invadido de forma perturbadora – e, dali em diante, eu nunca mais fui o mesmo leitor.

Há uns vinte anos, eu não sabia de muita coisa em se tratando de literatura. Pensando bem, eu não sabia muita coisa a respeito de porcaria nenhuma. E pra piorar, ainda era daqueles que achavam que a literatura brasileira, com uma exceção ou outra, era sofrível e só servia pra infernizar a vida dos alunos de ensino fundamental, obrigados a ler determinados escritores pra responder questionários e fazer provas, ainda que eles não entendam patavina. Claro que isso tinha tudo a ver com meus gostos pessoais e minhas referências da época, mas, por não saber de muita coisa, eu ignorava que tanto um como o outro estavam maculados por um fator que engloba tudo isso: minha ablepsia, minha cegueira para reparar o óbvio, que era o fato de que eu estava atolado na mais abjeta incapacidade de ver além.

Pois foi este professor – sempre eles – da faculdade que começou a fazer com que as coisas mudassem. Ele tinha um nome forte: Leão. E agia como tal. Ao menos na superfície, ele era o tal felino das savanas. As aulas do cara eram tensas, todo mundo com medo de ser questionado por ele sobre o mais recente texto, ou com receio de ser dizimado a um nada na frente de todos. Dependendo do dia, você poderia ser razoavelmente elogiado, ou convidado a se sentar porque sua apresentação estava uma bosta e ainda ser transformado num pulha. Quem tinha coragem e paciência para ir além, descobriria nele um ser humano afável, com um ar de soberba, mas de inegável genialidade. Seus métodos podiam até ser por demais atrelados à sua própria ortodoxia, mas para além do bicho, havia o homem – que nos ensinou a ler – e para alguns, como no meu caso – a amar Rubem Fonseca.

O conto era Feliz ano novo, um tipo de literatura feita no Brasil completamente inédita pra mim. Lembro que me foi dito que era um dos contos mais emblemáticos do autor, que vinha duma obra homônima que era igualmente boa. E leitura por obrigação, bem sabemos, já tira quase que a totalidade do prazer; saímos do beijo roubado para o beijo forçado, seco, sem trocas, sem desejo. Se tenho na minha lembrança que o que ocorreu em mim ao ler Feliz ano novo foi o oposto disso, é porque Rubem Fonseca entrou em minha vida chutando portas e cadeiras.

O autor é conhecido por suas temáticas selvagens, suas elipses, sua crueldade – realidade? – na descrição; pela força que o sexo, a violência e a desumanidade inerente ao ser humano têm em suas linhas. E ele é tudo isso mesmo, mas é muito mais do que isso. O que ele é para além desses substantivos todos, deixo para quem quiser descobri-lo (e a cada leitor deste texto, recomendo que saia daqui e vá atrás de um livro dele imediatamente!).

Comigo, a descoberta foi algo entre o grotesco e o apoteótico.

Saí da sala com a incumbência da leitura. Naquele momento, era tudo o que era requisitado de nós. Em pequenos grupos, como seres gregários que somos, fomos cometer o crime da cópia não autorizada. Alguém tinha o conto e fomos copiá-lo, para cada qual levar consigo o seu exemplar. Mal sabia eu que, ao retirar roupas e sapatos, tomar banho e me deitar para lê-lo, pensando que iria tão-somente realizar mais uma atividade daquele curso de Letras, que mal iniciava, estava prestes a descobrir um dos autores que mais têm me acompanhado ao longo da vida.

“Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon.”, diz a primeira frase do conto. Não demorou muito, eu estava com os olhos vidrados na história de Pereba e seus comparsas, que resolvem sair na noite da véspera do ano-novo comentendo crimes pelo Rio de Janeiro, chegando numa casa onde a carnificina e a escatologia é geral. Ao final, têm-se a nítida certeza de que o crime não para, e que no ano seguinte tudo será como antes. Se depender deles, ainda melhor.

Aquilo foi um golpe pra mim. De repente, eu me percebia verdadeiramente dentro do meu próprio país; não apenas porque compreendi, através da literatura, as mazelas que nos são inerentes, mas igualmente porque, terminada a leitura, deu aquele estalo, não sem uma pontada de tristeza, da abrasiva realidade que ainda está a nos corroer.

Feliz ano novo foi publicado em 1975. Tantas décadas passadas, o que mudou? Da realidade descrita naquele conto, nada. Políticas públicas ainda não foram capazes de modificar a realidade da criminalidade que envolve não apenas meliantes, como também policiais corruptos e gente corruptora de toda espécie. Não quero dizer, entretanto, que aquela leitura me deixou cético em relação ao meu país. Ao contrário: ter a possibilidade de enxergá-lo tal como ele é, e ter a consciência do quanto é preciso lutar, funciona como força motriz para que eu, ou qualquer leitor, nunca percamos o sentimento de que é preciso exigir muito mais do que o que está posto, e que as mudanças que estão em cursos estão cada vez mais urgentes. Ler Rubem Fonseca é uma maneira de abrir os olhos para o que te cerca, uma forma de compreender os meandros da mente humana, e reconhecer-se no espelho. Para além da negação, é o que somos, uma espécie repleta de mazelas, mas que não pode se perder ainda mais.

Rubem Fonseca me ensinou, vinte livros depois, que a malandragem e a iniquidade são intrínsecas a cada um de nós. Mas que nem por isso podemos deixar de sonhar com um futuro benfazejo.

Ao longo dos anos, o autor, que em 2015 chega aos 90 anos, tem se mostrado profícuo e prolífico, publicando um livro por ano, praticamente. Sua literatura já não tem mais a capacidade de chocar como tinha nos anos 70. Vivemos épocas tão tenebrosas, em um nível mundial, que a realidade exposta em nossa cara já não choca nem surpreende. Quando muito, serve de entretenimento em programecos policiais servidos na hora do almoço.

O certo é que a obra deste autor incomparável continuará aí para nos chacoalhar. E também para nos motivar a viver.