20 de março de 2015

Quando eu li J.K. Rowling

Quando eu li JK Rowling a primeira vez não foi para mim, mas acabou sendo. O ano era 2000 e eu vinha investindo em livros para minha prima. Oito anos mais velha, eu desejava muito transmitir uma das minhas paixões, ler. Ouvi falar de um livro para crianças que tinha um bruxo de 11 anos. Idade do próximo aniversário da Lívia. E era fantasia. Oba!

Sou uma leitora inveterada de fantasia. Todo autor cria, óbvio, mas o autor que faz nascer uma mitologia, para mim, é um fascinador. A genialidade do Tolkien se cristalizou com as páginas finais de “O Senhor dos Anéis”. O homem gerou um planeta com geografia e vegetação próprias. Ele fez nascer vários povos, como elfos, hobbits e anões, tendo cada um uma genealogia e língua. Materializou personagens em uma narrativa. E ainda usou aquelas últimas páginas para correr os olhos pelos dias vindouros da vida deles... Ah, a capacidade humana para sonhar!

Eu não esperava isso de Rowling. Não esperava nada, sinceramente. Comprei “Harry Potter e a Pedra Filosofal” e levei para a casa em modo “tábula rasa”. Seria um livro legal para a Lívia deixar correr a imaginação. Como tinha mais de 200 páginas, eu o li para ela. E talvez esse tenha sido o primeiro ingrediente da mágica.

Quem nunca leu um livro em voz alta para uma criança não consegue imaginar esse prazer. Fazer as vozes, entonações, conjeturar pausas dramáticas e ir sentindo a reação de cada palavra. Eu me senti também autora com JK Rowling. Parceiras, nós estávamos juntas contando aquela história para uma menina. E que história...

Num primeiro contato com os personagens, a estranheza do nome (quem chama alguém de Hermione?!) e uma total falta de preocupação com a correção da pronúncia (eu chamava de Dambledóri, não julguem). Fazia uma voz diferente para o grande mago e, logo, ele era o personagem preferido da Lívia. A mãe dos Weasley ganhou uma voz estridente e gerava gargalhadas a cada aparição. Tentava muito ajudar a Hermione a explicar a diferença entre Leviôsa e Leviosá (acho que eu também não teria levantado a pena).

O grande herói começa trancado embaixo da escada. Uma coruja faz uma aparição inesperada, uma carta que se recusa a não ser entregue e a grande revelação de um mundo fantástico do qual ele faz parte. A vida medíocre e desesperançada do órfão sendo invadida pela magia.  E Rowling me dá a primeira patada: olha, abra os olhos e contemple tudo o que criei. Humilde, me submeto.

E a narrativa segue sem pressa. Expresso Hogwarts por entre colinas levando à escola. O trem mesmo só é apresentado no sexto capítulo em um livro com 17. Levamos um terço da história para alcançar a Escola de Magia e Bruxaria, cenário principal de tudo que seguirá.  A ameaça ao herói só toma forma depois do capítulo 10. Nem por isso falta ritmo. Há pequenas aventuras e descobertas em cada página. O cenário de Rowling vale a jornada. Harry vai se encantando com cada bruxaria, e nós, leitores, seguramos na mão dele e deixamos o queixo cair também.

A história de fundo se mostra mais sombria. “Mas isso está muito pesado para a Lívia! Será que eu pulo essa parte?”. Algo me fez confiar na inglesa que bagunçava o latim para criar feitiços. Segui. E descobri que Rowling conhecia seu leitor mais do que eu. Ela não patronizada, não subestimava, e, no entanto, jamais revelava o que ele não estava pronto para ver.

A realidade triste daquele garoto era aquela mesmo. Só que escrita de um jeito que se entrevia as camadas com sutileza. E minha ouvinte tirava mais que eu esperava que fosse captar. A cena em que Harry quer passar o resto da vida olhando para o Espelho de Ojesed entristecia a Lívia ao mesmo tempo em que a solidão do menino de 11 anos que nunca conheceu os pais arrombava meu coração. Cada leitor abarca até onde aguenta compreender sem perder a força do momento mostrado.

Nas nossas paradas de leitura, eu ficava ruminando interpretações. A figura da cicatriz na testa foi uma das coisas mais brilhantes que li. A marca de algo horrível que ocorreu e para sempre moldará a personalidade de quem passou por isso. O estigma pelo qual as pessoas a sua volta lhe identificam como “a vítima” e lhe julgam a partir daí. O calejo de um sofrimento que também gera o inesperado meio pelo qual você pode enfrentar o mal que lhe assola. E a conexão eterna criada com o seu algoz. Significados tantos e que ainda vão ganhando novas cores e contornos nos livros seguintes.

O herói “escolhido” como especial e salvador está presente, óbvio. Harry Potter tem um charme extra. Ele vai descobrindo sua história, a do terrível acontecimento que tirou sua família, e vai formando conscientemente seus passos. Você decide como reagir ao que a vida lhe entrega e isso que faz quem você é. Pode-se dizer que este será o tema da série. Em “Harry Potter e a Câmara Secreta”, há uma fala explícita de Dumbledore sobre o poder das escolhas. Opa, mas até agora eu não sabia disso! Sabia apenas que ele era um excelente apanhador no quadribol! E lá fomos nós desenhar num papel a disposição dos times para melhor capturar as cenas dos jogos.

E chegamos a Hermione. A querida, bitolada, teimosa, forte e corajosa Hermione. Em um mundo que abriga a franquia “Princesas”, essa bruxa foi sopro de oxigênio puro. Você já parou um instante para pensar qual o papel das mulheres nas histórias para crianças? Roubadas, sequestradas, neutralizadas. Se eu não tivesse lido nada mais dessa autora depois, eu ainda seria eterna agradecida por ela ter nos dado Hermione. Quando os meninos vão “resgatar” Hermione de um monstro, ela termina destruindo o banheiro com eles ao enfrentar a criatura. E acordada.

Além de menina, a bruxa estuda. E muito! Conhecedora dos feitiços que ninguém aprendeu e detentora de todos os fatos de “Hogwarts, uma história”. Os estudos de Hermione serem fundamentais na luta contra o mal é a vingança dos nerds. Essa escola, aliás, é toda inovadora. Imagine que os alunos vão à biblioteca consultar livros?! E que eles têm uma relação de discípulos com seus professores! O que esperar de uma escola cujo lema é “"Nunca faça cócegas em um dragão adormecido”, né?

Terminamos o livro em um fôlego só, passamos a fazer piadas que os “trouxas” não entendiam. “Câmara Secreta” foi um ritual de passagem. Também com mais de 200 páginas, revezamos. Eu lia um capítulo para ela, ela lia outro para mim. Já não lembro se fazíamos as vozes. A partir do terceiro, ela lia só. Como segue lendo, até hoje. E eu considero JK Rowling parceira também nisso.

Não só eu, na verdade. Foram 600 milhões de exemplares da série vendidos no mundo todo. A Wikipédia cita uma pesquisa inglesa que afirma que “51% dos leitores de Harry Potter com idade entre 5 e 17 anos disseram que não liam livros por diversão antes de começarem a ler Harry Potter, e que agora o fazem”. Eu acredito. Um bom livro tem a capacidade de despertar para outros mundos e para outros hábitos.

Uma história com vários elementos inspirados aqui e ali em outros mundos de fantasia, você pode dizer. Concordo. Mas com originalidade o bastante para lhe dar seu próprio universo fantástico. Texto cativante e bem estruturado. Uma narrativa leve que não foge à complexidade da vida.

Para mim, o “menino que sobreviveu” ficou com cara de “amiguinho” que eu vi crescer ao lado da menina lá de casa. Neste último Natal, ganhei o novo livro de Rowling, um romance policial. Lívia já leu. Eu ainda nem abri. Parece que nós três mudamos desde que nos encontramos a primeira vez... Há dois anos, tenho outra menina na minha vida. Harry Potter está na prateleira, esperando por Elisa. Um dia eu vou, pela primeira vez, ler JK Rowling para minha filha, e vai acabar sendo para mim de novo.