22 de maio de 2014

Três fragmentos de "O vidro", de Luís Quintais

§Haverá biografia? Quando tinha seis ou sete anos, por aí, lançava bolas a uma parede, batia-as violentamente com uma raquete empenada, batia-as desalmadamente. As bolas voltavam a mim, agressivas, rápidas, capazes de me matar, não fosse eu hábil no desvio do momento que em mim se antecipava como uma voz que já não reconheço nem escuto. O demónio virá como uma bola de ténis quebrando o vidro da biografia. Milimetricamente, recordo-me. Por duas vezes não era uma bola de ténis, mas balas à procura de uma vítima, eu próprio, sentado no muro fronteiro à casa. Quero ainda quebrar o vidro. Vou quebrá-lo. Vou quebrar esta mão do lembrar.
[p. 79]

§

(Lisboa, Assírio & Alvim)

Brincava sobre o muro. Tinha carrinhos, pedrinhas, pensamentos obscurecidos por uma inocência, hoje, sem recorte. Dentro da casa, a família afadigava-se na contemplação da fuga através de um belo exercício de ânimo, festa e recusa, reconheço-o. Escutei um silvo e depois outro. Um bocado de estuque sobre a cabeça e alguém haveria de vir em meu socorro do vazio da casa que era como um saco sem fundo e sem propósito. «Uma bala perdida» e eu perdido para a vida, ou quase, por centímetros poucos e distracções cortezes e felinas.
[p. 80]

§

Brincava com uma lupa. O vidro ampliava a luz, desmaterializava os objectos. Como na rua Morgue, o símio vinha sobrepujado pelo medo. Mas a fome seria a resposta. A fome responde sempre ao medo. Somos criaturas apavoradas, diz-nos a evolução. Reconheci-lhe os movimentos na sala, a agilidade também minha, a fragilidade só aparente. Reconheci-o, tomando-o pelo olhar, como quem alicia um amigo para uma insensatez, para uma desrazão feliz e mortal. Ele aproximou-se com a serenidade de um humano que se compraz com a violência enquanto se debruça sobre a primeira refeição do dia. Os olhos revelaram-me o seu medo e, por instantes, sem decifração possível, entrevi-lhe o gesto rápido e quase indolor dos dentes sobre a pequena mão. Não fugi. Não lhe movi perseguição. Prisioneiro do espanto do sangue contornando a mão e a lupa, preenchendo todos os espaços dos objectos desmaterializados, vermelho, rubro como a intensidade que se solta da palavra rubra. Rubro é sinónimo de mordida, medo, fome e paralisia vital perante o sangue disperso sobre o vidro que amplia. Rubra é a violência de uma memória que vem depois. Rubra cabeça decepada do animal que saltou do medo para a mão e que se prestou ao cuidado de uma ciência tropical. Rubra a cicatriz que teima na mão, que se diluirá com a minha morte, como traço que se apaga, como dor murada pelo esquecimento.
[pp. 81-2]

[Luís Quintais] nasceu em 1968 em Angola. É antropólogo social e lecciona presentemente no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Nesta qualidade, tem vindo a desenvolver investigação de arquivo e de terreno sobre o exercício e as implicações públicas e forenses da psiquiatria. Publicou o seu primeiro livro de poesia em 1995, A Imprecisa Melancolia (Teorema e Lumen). Em 1999 regressa à poesia, publicando Umbria (Pedra Formosa) e Lamento (Livros Cotovia). Posteriormente publicou Verso Antigo (2000), Angst (2003), Duelo (2004), Canto Onde (2006) e Mais espesso que a água (2008), todos pelos Livros Cotovia. Com Duelo venceu da oitava edição do Prémio de Poesia Luís Miguel Nava referente a 2005. Luís Quintais tem um página pessoal na NET, participou no blog casmurro e no Webqualia. Actualmente, anima Os livros ardem mal .