27 de março de 2014

9 poemas inéditos de Bruna Escaleira

presente

ao meu avô

busco um cheiro que já não existe
sinto saudades de algo que nunca foi
pairo numa melancolia confusa
que farfalha sorrisos internos
imprevisíveis

de súbito, a vista da janela me desanuvia a mente
os pisca-piscas mal colocados
a televisão ligada na penumbra da sala
aconchego de porta aberta
me comovem

e o que me sobra é a presença do seu conforto
deslocada nesta cena
e nos meus olhos

despir-se

escrever é o ato público
mais íntimo
porque as letras tocam apenas
quando a pele se faz eu lírico
só o poeta nu
escuta as flores

entranhamento

uma pele bem tocada
é superfície de entranhas

língua vital

do que é que o corpo fala que idioma nenhum participa?
que nem o gesto mais sutil apreende?
só o toque no toque, de fato, transmite
os mistérios profundos que nos movem as entranhas

seria o sexo a única forma de comunicação real?
capaz de transpor fronteiras entre seres
e uni-los na verdadeira língua materna
sabedoria de gaia, pacha mama, ciclo vital

idioma que todos nascemos sabendo
e por não saber da própria sabedoria
acabamos, com esforço, esquecendo

chega um dia em que tal lembrança nos falta
e buscamos nas línguas e linguagens todas
a essência perdida que nunca carregam

sexualidade
ou imensidão

no oceano da pele
nado em águas livres

a garota do hímen ½ rompido

lá vai a garota do hímen meio rompido
abalado, mas resistente
resquício de honra confuso

- você é virgem?
- mais ou menos.
- ?

lá vai ela, vontade errante
metade, rompeu com um
a outra, perdeu com outro
o restinho, foi-se com um terceiro

- quem tirou sua virgindade?
- ninguém.
- então ainda é donzela?
- ?

lá vai a garota, agora sem hímen
foi-se a película, nasceu a pele
de corpos em corpos, conhece seu próprio
amarras alheias já não lhe seguram

- afinal, você perdeu a virgindade?
- não, ganhei a liberdade.
- e foi com quem?
- comigo.

lá vai ela, mundo afora
nem tente acompanhá-la
hímen rompido
integridade intacta

poema escarrado

este poema saiu assim porque eu queria cuspir na sua cara

este

este amor é leve
feito espinho fino
suavemente arrebata
o peso duma solidão

ainda não sei seu gosto
arrisco erva doce crua
hortelã gelada
ou morangos

cheiro de gelo
pele de blues
este amor tem som de azul
olhos de mar cristalino

quando descobri que o amor são muitos
o amor ficou maior
e possível
posso dizes este ou aquele
e ainda outro e tantos
mas o único amor que existe
é este que ama
presente

presságio

as nuvens são indicadores de mudança. quando o céu se forma bem alto e grande e o ar fica espesso da minha janela, é tempo do novo vento passar. na fresca da madrugada, o ar se areja e forma-se um vale desta colina até a parede de nuvens ao longe. são tão consistentes, parecem uma enorme encosta de montanha homogênea, sem rachaduras. destacam-se, porém, alguns cúmulos menores, mais fluidos, como árvores frente à chapada. são estas, pequeninas, as que se movem com a passagem da revolução.

elas vêm pra dizer que não há renovação sem delicadeza.

.quem não é capaz de sentir as cócegas do vento,
não pode sonhar