20 de fevereiro de 2014

Poemas de Cel Bentin

Ouvir toda palavra
primeiro
com os olhos.

Descobrir
seu volume
em silêncio.

Tatear seu som
manuscrito aceso
no peito.

Só depois,
com o sentido nas mãos,
deixar verter pela boca escrita nova.

Singular,
pessoal
e transferível.

Sob a voz alta
que alcança o segredo
da fome aberta nos olhares alheios.

PREFÁCIO [ou VOX ALTA]

***
I A Car(t)ola

Na liturgia do samba
dançam boas novas
& antigos evangelhos.
II A Antoine
As rosas não falam; escrevem
(a música, a si e a quem ouça).

– Vai rever as rosas.
antoine de saint-exupéry
TIRANDO CARTOLA

***
(Vi)

na
maré

cheia
de lua

(rio)

entre
o torpedo
e a praia

(absoluto)

o mar
é todo

alvo.
O alento heroico do mar tem seu polo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.
cecília meireles

MIRANTE

para Pedro Carvalho Santos

***

Nada mais amansa a ansiedade
ou disfarça a tensão do anseio
morado em teu mistério corado;

talhado na terra dos instintos a vésperas de quilates raros,
teu enigma tanto fundo sacia a ambição avoada de teu seio
como alto incandesce a vontade do veio do leito imaginado:
de chama rara, queima os ponteiros dos olhos do tempo;
toda bem acesa, é a âncora-luz dos espasmos mais altos.

E não terás de abrir-nos os escaninhos dos olhos
para se perderem todos em contação de estrelas
ou enxergar a voz estreita do êxtase madrugado.

A foz de teus arrepios, violenta e liberta às avessas,
não se acaricia ao vislumbrar a superfície do visível

(ela melhor se delicia, deságua e brinda
sob a entrega da cega alvorada vívida
ancorada no átimo do orgasmo das liras).

DE OLHOS BEM FECHADOS

***
Nos ares de uma segunda-feira
o dia transparece, não enxerga;
Lança a asa vagarosa da tarrafa de despertar
sobre o delta do céu rumo ao cais das janelas.

– A aurora pinta sua luminosidade didática
tramando refinos no tom cerzido aos olhos.
(Como se me fosse necessário ver,
avança de luz além da íris do avião.)
Já a rede da noite, secreta descoberta,
firmara seu tom sem precisões de lume.

Delas, prefiro a que melhor cegue,
senha furta-cor na cor do invisível:
é impressão que não solta da pele,
nem mesmo depois que amanhece.

Pé ante pé, do leito, aproxima-se um verso

para a canção de despertar
mario quintana

DAY-AFTER

 

*Autor do livro de poemas Segredaria, Cel Bentin é paulistano, nascido no fim dos anos 70. Integrou a Antologia do 1º Prêmio Cassiano Nunes – Concurso Nacional de Poesias (Universidade de Brasília – UnB), o flipbook Asfalto (Publicações Iara) e meia dúzia de sites/blogs e zines. Revisa textos por ofício, como quem ouve a voz que escreve. Gosta de teatro e cinema; prefere o cajón à poltrona. Sente que palavra é bicho mais denso do que as gramáticas pregam e a tabela periódica imagina. Desconfia do querer dizer: desafia e firma fé é no (se) ouvir falar que a intimidade de quem lê ampara, provoca ou renega. Acredita em profundidades que apontam para o alto. Mais jamais confessa (e anuncia): só segreda.