10 de março de 2015

SANDRINHA DA CARGUEIRA

Logo após a festa de cinco aninhos, Sandrinha colocou-se a correr com os coleguinhas pelas calçadas da vizinhança, ainda vestida de princesa e tiara cor de rosa, quando topou no batente da casa de costura e caiu. Levantou-se e percebeu que seus dois dentinhos haviam ficado no chão, junto a uma pequena pocinha de sangue. Como estava de sangue quente, pois corria, não sentiu dor e nem chorou, Sandrinha não chorava por qualquer coisa, não senhor!

Família humilde e desconhecedores da alfabetização, a situação tornava-se cada vez mais complicada com o pai de Sandrinha desempregado e alcóolatra, o sustento vinha das diárias que dona Rosalba, mãe de Sandrinha, fazia nas casas distantes. Sandrinha nunca entendera porque as Donas preferiam que a mãe dela trabalhasse à noite, virando as horas da madrugada, entretanto, nunca questionou com a mãezinha, que lhe fazia falta nas noites horríveis de pesadelo. Certo dia foram uns homens mal encarados lá na sua casa, procurando pelo pai. Disseram-se amigos, mas quando Sandrinha destrancou o portão e os homens entraram e pegaram o pai - só de toalha - no corredor, bateram muito nele, na barriga, nas costas, costelas e na cara. Quando os homens se foram, Sandrinha saiu de trás da estante e foi ao encontro do pai, que estava pelado e gemendo no chão, e perguntou: “por que seus amigos fizeram isso com você, papai?” Não houve resposta, apenas mais gemidos.

Quando dona Rosalba chegou da labuta, com o dia já quase raiando, encontrou o homem sentado no resto de sofá que havia na sala, com blusas velhas e panos de prato amarrados pelo corpo ensanguentado, sangue seco. Duas lágrimas desceram mornas pelo rosto do homem barbado, que ainda gemia. A mulher nada falou. Fez o café e saiu avexada naquela manhã, olhos inchados. “Arranjei pra tu entregar as compras alheias do mercantil do seu Rosivaldo. Começa amanhã”. Era uma ordem. Ao chegar no dia seguinte, no mercantil cheio, o dono mal pegou na sua mão e apontou-lhe de imediato um depósito, lá encontraria uma velha bicicleta cargueira e dois caixotes, respiração sôfrega.

Sol quente, meio-dia em ponto. Sandrinha acabara de chegar do colégio e descobrira o novo trabalho do pai, que era seu xodó. “Vou pedir pro pai me levar no varão” – disse Sandrinha, sorriso disforme. “Deixa de besteira, menina! O maldito do teu pai mal pode com aqueles caixotes!”. Quando o pai chegou à noite, cansado e cheirando a cachaça, a menina agarrou na sua perna e suplicou: “Me leva no varão amanhã?”. Não houve carícias, apenas indiferença. Dia seguinte, a menina mal tirou a fardinha da escola e a mãe não deu conta quando Sandrinha saiu correndo, perninhas bambas. Encontrou o pai saindo do mercantil para mais uma entrega, correu danada. “Deixa eu ir no varão, paizinho!?” O homem, mosca morta e suado, nem para dizer que não levaria, apenas pedalou. Sandrinha, conformada com o pouco, contentava-se em apenas correr atrás da velha cargueira, e assim passou a tarde. O pai vez ou outra olhava para ver se a filha ainda o seguia, mas Sandrinha, incansável, continuava em sua corrida atrás do pai.

Última entrega, boquinha da noite. A Avenida São João/N. 316 ficava a poucos metros do mercantil, trânsito intenso. Foi quando o pai, com o gosto amargo da cana na boca, mal via a hora de largar a maldita cargueira no depósito e seguir pro bar, que colocou os pés no chão do calçamento para esperar uma brecha entre os veículos e o tráfego intenso e passar. Olhou para trás e não viu Sandrinha, decerto havia cansado e voltado para casa.

A brecha. A cachaça. O problema.

Encaixou o pé no pedal e mais uma vez olhou para trás. Lá vinha Sandrinha, toda descabelada, gritando: “Espera eu, papai!”. Não haveria outra brecha logo. Um ônibus que vinha embalado da Barra, cheinho de trabalhadores, apontou na cabeça do alto. Colocou forças no pedal e foi. Cruzou a rua, parou a bicicleta e olhou para trás. Sandrinha veloz e sorrindo, pois o pai havia, pela primeira vez, parado para esperá-la. Sorriso aberto, dois dentinhos faltando, Sandrinha quase não sentiu o impacto do ônibus nem ouviu o barulho do freio, apenas rolou pelo asfalto como nas brincadeiras com as ondas gostosas e violentas da praia de Iracema – que visitara uma única vez, passeio gratuito da escola.