6 de abril de 2023

Seja o que Deus quiser

– Ah, meu Jesus, coitadinhos – exclamou ao ver os dois filhotes caídos no chão. 

O ninho passou despercebido até então, apesar de explícito, construído entre o galho do pé de acerola e a corda do varal.

Quando chegou perto, os filhotes saíram a pular pelo chão. Enquanto tentava pegá-los, os pais voavam baixo em torno dela, soltando piados agudos.

Agarrar o primeiro foi fácil. O segundo arriscou voar e se estatelou no meio da moita de hortelã. Só conseguiu capturá-lo porque ficou encurralado no canto da parede. Sentiu a pulsação assustada na palma das mão. Apesar de bem emplumados, os filhotes ainda eram inaptos pro voo. 

Certo que caíram do ninho por acidente. Antes de colocá-los de volta no pequeno trançado de capim seco, deu beijo em cada um deles. Sentiu o cheiro fresco da hortelã nas penas que se abriam no pequeno corpo quente e agitado.

Uma emoção crescente tomou conta dela. Tão linda a vida se refazendo no fim da primavera. Os passarinhos quase prontos pra voar por aí, coisa que ela jamais seria capaz de fazer, sempre entre a cozinha e o quintal. Alisou a cabeça de um dos filhotes, olhou pro céu, enxugou a gota de suor que escorria da testa, agarrou uma acerola graúda e entrou na cozinha fazendo careta com o azedume.



Quando o marido chegou pro almoço, contou a novidade.

– É o ninho dos sabiás que bicam as acerolas – ele disse com a boca cheia de farinha.

– Já tinha visto?

– Falei disso dias atrás. Nunca presta atenção no que digo.

Ela se fez de desentendida, voltou a comer o arroz com feijão pensando nos passarinhos.


Depois de lavar os pratos, voltou ao quintal. Se arrepiou toda ao vê-los outra vez no chão, jogou a vassoura que estava encostada na parede pra espantar o gato, já de bote armado. Faltou pouco.

E foi aquele alvoroço pra pegar os passarinhos, colocá-los no ninho, os pais voando ao redor, sem perceber que ela não era uma ameaça, mas a salvação. Palpitou no coração que era a responsável pelos filhotes, afinal, chegou na hora exata pra evitar a tragédia. Era coisa maior que uma coincidência, ela teve certeza. Foi Deus. E aninhou os pequenos sabiás, faltava pouco pra estarem prontos.

Antes de entrar, agarrou o gato pelo cangote, segurando com força. O condenado ia acabar com a novidade dos passarinhos, destruir a beleza da vida que se aprontava no quintal. Maldito sem coração, não era possível que com tanta ração no prato fosse atentar os pobres sabiás. Satanás traiçoeiro dos infernos, certo que comeria até ela não fosse do tamanho que é.

Amarrou o pescoço do desgraçado com a corda fina que estava pendurada no suporte do ferro de passar. Depois atou a outra ponta no pé do armário. Ficaria ali até que os sabiazinhos encontrassem a liberdade.

 

Na manhã seguinte, a primeira coisa que fez ao acordar foi ver os passarinhos. As folhas do pé de acerola ainda úmidas da noite e o ninho vazio. O coração acelerou, lembrou dos miados de madrugada, os pestes dos gatos dos vizinhos. Só acalmou quando ouviu o piado no meio das hortelãs, lá estavam os dois, juntinhos, como bons irmãos. Quando viu a mãe voando pelo quintal, saiu de perto. Ela logo pousou com uma lagarta verde no bico e deu de comer aos filhotes. Uma emoção radiante ver o cuidado dos sabiás, que alimentavam os pequenos mesmo fora do ninho.

Ela desistiu de colocá-los de volta no pé de acerola, caíam toda vez. Também eles já davam pequenos saltos pelo quintal, como se quisessem voar, mas ainda não estavam prontos.

 

Ia ao quintal sempre que podia pra ver os avanços dos filhotes. Pelos dias seguintes, foi quase do mesmo jeito. Ficavam pulando pelo quintal, em uns voos curtos, nada de inflar o peito, bater asas e desbravar o horizonte.

Olhou o ninho vazio, balançando com as roupas no varal. Então era isso, a corda sacudia o galho do pé de acerola e derrubava os filhotes. Sabiás retardados, souberam nem onde fazer o ninho. E os filhotes nada de voar. Devia ser uma burrice genética, ficavam por ali no quintal com uns voozinhos curtos. Uma lerdeza, quatro dias já, a despedida sempre adiada porque os filhotes nunca voavam. 

A novidade virou rotina, inclusive a mania chata de ir toda hora ao quintal pra ver se as visitas não convidadas partiram. E nada. Os pais ainda ficavam bicando as acerolas, nem pra suco prestavam.

 

Voltou depois do almoço e eles continuavam pelo quintal.

Entrou irritada. Bebeu um copo d'água com a mão apoiada na cintura. O gato a encarou sem miar, uns olhos ariscos, talvez ódio.

Ela colocou o copo na pia, abaixou, desatou a corda. O gato lambeu a pata e correu em direção ao quintal.

Michel de Oliveira é escritor, fotógrafo, artista visual, jornalista e doutor em Comunicação e Informação pela UFRGS. Autor de Meus dedos sentem falta do seu cheiro (Moinhos, 2022),  Fatal Error (Moinhos, 2021), O amor são tontas coisas (Moinhos, 2021), O sagrado coração do homem (Moinhos, 2018), Cólicas, câimbras e outras dores (Oito e Meio, 2017) e do livro de não ficção Saudades eternas: fotografia entre a morte e a sobrevida (Eduel, 2018); participou das antologias Como tudo começou: a história e 35 histórias dos 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUCRS (ediPUCRS, 2020) e Qualquer ontem (Bestiário, 2019).