19 de janeiro de 2023

Dois contos, de Nathalie Lourenço

DOIS DEDOS MOLHADOS

Ela achava Daniel meio feioso, esquisito até, então por que ele insistia em aparecer na sua cabeça sempre que a mão direita se esgueirava calcinha adentro? O colega era da área de RH, tinha cara meio de havaiano, olhos meio puxados, alto e quase quadrado de tão maciço, com peitinhos que ficavam marcados de suor nos dias quentes e lábios grossos demais para ficarem bem em um homem. E, pra deixar Lili ainda mais culpada, ele era fissurado na esposa. Já fazia alguns meses que os dois descobriram que moravam em bairros próximos e foi assim que as caronas começaram. O trânsito de São Paulo, sempre horrível, fazia o papo se alongar e assim ela sabia todas as pequenas coisas que ele fazia por Giovanna (pode me deixar na farmácia? Gi está meio mal), ajudava nas ideias de presente (mas eu já dei brinco ano passado), palpitava nos planos para o fim de semana (ela adorou o restaurante que você indicou) e até escutava parte das conversas quando, no carro dela, eles se falavam ao telefone.

Quando terminava, com os dois dedos molhados, tinha vergonha da traição imaginária que fazia o amigo cometer, dia sim, dia não. Não se masturbava assim, tão seguido e tão bem desde a adolescência, quando o casting das fantasias incluía todo tipo de ator e meninos mais velhos da escola. Levantou da cama para lavar as mãos, e o marido dela não se moveu, como não tinha se movido enquanto ela girava os dedos, primeiro devagar, e depois conforme esfregava, cada vez mais rápido, fazendo o colchão vibrar no mesmo ritmo. Era um jogo que ela jogava sozinha. Na primeira vez tinha sido uma siririca raivosa, vingativa, ao lado de um Romeu que tentava dormir depois de ignorar a subida e descida da mão dela entre suas coxas. Queria que ele ouvisse o chapear dos dedos, o suspiro profundo no final, como quem diz, Deixe Que Eu Me Viro Sozinha. Depois fez outras vezes, antes de dormir, no sofá da sala enquanto viam TV, e até numa das cadeiras da cozinha. Torcia que Romeu a visse e se excitasse — ou tivesse pena, até mesmo uma foda por pena ela aceitaria — e viesse também dar uma mãozinha. Sem efeito. A televisão continuava mais interessante que ela, com seus 212 canais diferentes.

A esfregação virou rotina. Pela manhã ou antes de dormir, no fim de semana também, durante a tarde, na moleza que se segue ao almoço. Pensava nas coisas mais variadas, outros caras, filmes pornôs que via no celular quando ia ao banheiro mas, no final, quando as contrações e espasmos começavam, os rostos mudavam para o de Daniel, os corpos transmutavam para o formato quadrado, cor de caramelo do colega. Não conseguia se livrar dele. Era uma assombração que a deixava melancólica assim que os dedos começavam a secar. Não bastasse a vida sexual menos que morna, agora tinha uma buceta assombrada.

Parou de lavar as mãos logo após as siriricas. Quem sabe o cheiro conseguisse provocar seu marido, fazê-lo parar de fingir que não a via gozar em voo solo ali do lado? Se eles transassem, as fantasias indesejadas com Daniel iriam sumir, ela tinha certeza.

Contra sua vontade imaginária, Daniel fazia de tudo, de frente, de lado, de costas (sempre após um complexo cenário que permitia tirar Giovanna da jogada de forma socialmente aceitável) e quando acabava ele ainda permanecia uns minutos na sua mente para a conchinha. Uma vez a cada três meses, o marido se deixava convencer a performar. Pouco adiantava. Mesmo durante as arremetidas de verdade, as mãos, boca, braços e pau muito reais do marido a seu serviço, ainda era o colega de lábios grossos que aparecia na sua cabeça e a fazia gozar.

Dezembro chegou, era o momento que Lili mais temia. A festa da firma. Morria de medo que a bebida e a proximidade de Daniel no Uber que rachariam na volta (eles moravam tão perto) causassem um irremediável episódio de sincericídio ou coisa pior, algo que prejudicasse o relacionamento do colega. Sabe Que Sempre Que Bato Uma Acabo Pensando em Você? E se solta uma dessas, como trabalhar no dia seguinte? Como trabalhar no resto da vida?

Os drinks não paravam de chegar e as pessoas brindavam a ponto de fazer cair gelo e vodka no chão. Passou a festa toda agarrada numa garrafa de água e evitando Daniel. Que preservasse a aura de dignidade que tinha na firma. Pouco depois da meia-noite, já não parecia divertido ser a única sóbria a observar os diferentes tipos de bêbados com quem trabalhava: os alegres, os briguentos, os catatônicos, os carentes. Decidiu ir embora, saiu à procura de Daniel para oferecer a carona. Encontrou. No canto escuro onde ficava o extintor de incêndio, ele beijava a diretora do financeiro com uma boca aberta que deixava entrever as línguas: dele e dela.

Arcou sozinha com o custo da corrida, botou pijama e deitou ao lado do marido que já dormia. Chegou a descansar a mão sobre o monte de vênus mas não teve apetite. Não saberia no que pensar enquanto os dedos se moviam. Daniel não se importava com a esposa, Giovanna. E pensar que ela se masturbou tanto, pensando que em algum lugar ainda existia o amor.

 

ASSOMBRAÇÃO

Não sei bem porque decidi começar a aparecer na casa da Vanda. Aconteceu. Eu tinha a chave do apê, a gente terminou, a gente parou de se falar e como é natural, eu bloqueei ela em todas as redes pra não ter que ficar olhando as fotos e ficar lembrando de tudo toda hora. Pra piorar, a faculdade dela ficava a poucas quadras de onde eu morava e eu ficava controlando a hora que eu chegava pra não passar na frente durante a entrada dos alunos da noite.

Eu tinha muitas coisas dela comigo, coisas que estava guardando no fundo do armário, atrás dos casacos pesados de viagem que eram do meu pai. Dois anos, né.  Sabe, sempre achei ridículas aquelas cenas de filme em que as pessoas fazem fogueiras com as tralhas dos ex-namorados, ou jogam tudo pela janela, mas também não queria ficar com um verdadeiro Museu da Vanda pela casa. Obra: Camiseta de pijama pra ver série junto. Estampa e mancha a óleo de pipoca sobre algodão. Obra: Livro esquecido com recibo de compra como marcador. Técnica mista. Não, coloquei tudo numa mochila no armário pra devolver um dia, assim, quando as coisas não importassem mais e depois esqueci e ela também nunca veio cobrar. Até que o Aldo pediu um casaco emprestado, ele estava indo pra Amsterdam, e aí eu topei com a mochila e resolvi devolver as coisas. Devia fazer uns três meses. Não tinha nada muito importante ali, umas blusas, um shampoo caro, chinelos, pijama, umas calcinhas, uma escova de dente arregaçada, livros, um estojo de lente de contato. Eu tinha bloqueado ela em todas as redes, te falei, deletado o número, mas claro que eu ainda sabia onde ela morava, então fui lá. Não lembro, você chegou a ir comigo alguma vez? É um daqueles prédios sem elevador e sem portaria no centro, que tem três, quatro andares, coberto de pastilhas verdes. Um daqueles apês velhos bacanas, grande demais pra uma estudante que mora sozinha. Você sabe como a coisa funciona: ela pagava uma parte do aluguel com o estágio e os pais bancavam o resto. Eu toquei várias vezes o interfone, segurei o dedo mesmo, até ouvi ele tocando lá no terceiro andar e nada. Era domingo, achei que ela ia estar em casa, achei mesmo.

Resolvi tomar uma no boteco da esquina, era um lugar que eu ia muito quando a gente tava junto, não porque era bom, nem nada, é que lá abria bem cedo e a gente nunca lembrava de comprar pão de noite, então eu descia assim que acordava pra buscar. Começou a escurecer e nada da Vanda. Talvez fosse um daqueles fins de semana que ela ia pra cidade dos pais em Itabira e voltava só na segunda, direto da estrada para o estágio. Eu tinha ido em alguns desses fins de semana e tomado caipirinhas com os tios dela e brincado com os primos dela na piscina, apesar daquilo estar sempre verde de limo e de folha.

Enfim, de jeito nenhum que eu ia voltar pra casa com aquele monte de tralha. Não tinha porteiro pra deixar a mochila e jogar tudo fora seria sacanagem. E aí eu lembrei da chave, ela tinha me dado no nosso primeiro aniversário de namoro, não como se fosse algum sinal, alguma coisa especial, era porque ela ia sair tarde do trabalho, e assim eu podia ficar no apê esperando em vez de ficar matando tempo na rua, a gente tinha combinado de ir na hamburgueria ali perto, apesar de que no fim deu preguiça e só pedimos uma pizza mesmo. Enfim, a chave tava comigo ainda e por que não subir rapidinho só pra deixar o que era dela ali dentro? A chave maior era pra porta do prédio, a menorzinha era a da área de serviço. Tudo continuava igual, o cesto de roupa transbordando, um resto de pizza guardado no forno em vez da geladeira, umas colagens pela metade em cima da mesa. A Vanda parece toda arrumada, fofa e pequenininha mas na real ela é bagunçada pra caramba. Ia ser esquisito só deixar as coisas lá, então eu fui pro quarto procurar papel pra escrever um bilhete.

Ali tava tudo igual também, a cama desfeita, um monte de brincos amontoados no criado-mudo, a Vanda sempre gostou de usar uns negócios grandes na orelha. A cama dela é grandona, grande demais pro quarto, tanto que eu tinha que ficar de lado pra passar entre ela e o armário. Eu sentei um pouquinho, um pouquinho só pra procurar papel e caneta só que eu tava meio grogue das cervejas no boteco e daí eu me encostei e acabei dormindo.

É muito gostoso dormir ali porque a rua dela é tranquila, você sabe a gritaria que é à noite ali na minha casa, com aqueles bares da faculdade logo embaixo. Todo dia tem briga e mulher gritando, barulho de garrafa quebrando, o escambau. Devo ter dormido umas três horas, sei lá, sabe aquele sono que nem tem sonho, é só um corte de preto e daí você abre o olho de novo, como se tivesse passado menos de um segundo? É o melhor sono. Mas depois começou a passar aquele calorzinho bom, aquele amolecimento do sono e eu fiquei com medo dela chegar de repente e ficar brava de eu ter entrado e a Vanda sempre foi campeã em brigar comigo pelos menores motivos. Pensei em pegar a  mochila e sair correndo, e desencanar, doar as coisas dela pra uma instituição e pronto.

Demorou pra eu acordar completamente e ver que era perto da meia-noite de domingo, se ela fosse voltar já teria chegado. E aí eu fiquei mais calmo, lavei um copo na pia e bebi uma água, naqueles copos de festival que ela coleciona. No fim, não escrevi o bilhete, achei melhor guardar as coisas, coloquei a camiseta no fundo do cesto de roupa suja, o chinelo atrás das botas no armário, as maquiagens dentro de uma bolsa pendurada na maçaneta do quarto. Ela que pensasse que estava ficando doida, “olha, então era aqui que isso estava”. Imaginei as sobrancelhas dela tentando se juntar cada vez que isso acontecesse. Era uma coisa muito dela. Nessa hora eu já estava mais tranquilo então vi um filme na TV, fiz um sanduíche com umas coisas que estavam na geladeira e depois lavei a louça. Eu não aguento ver uma pia suja, você me conhece. Eu sempre dava uma geral no apê quando a gente tava junto. Na real, eu cuidava do apê bem melhor que ela. Bom, no fim eu acabei ficando o resto da noite, pra não ter que pegar o carro aquela hora e antes de sair ainda arrumei a cama e coloquei na máquina umas calcinhas que estavam pelo chão. Talvez ela achasse que ela que tinha feito aquilo antes de viajar e ficasse meio orgulhosa. De repente se ela pensasse mesmo que andava arrumando a casa entrasse na cabeça dela que era fácil fazer aquilo, uns minutos depois de voltar da faculdade, uns minutos antes de sair pra trabalhar, tão fácil que ela nem lembrava de ter feito. De repente ela ia começar a achar que limpar era parte da rotina dela e fazer sozinha.

Era pra ter sido uma vez só. Óbvio. Não é uma coisa que alguém pensa em ficar fazendo. Passaram algumas semanas mas eu fiquei com aquilo na cabeça. Eu gostava muito da casa dela, dava uma nostalgia boa. Aquela sensação de pegar um seriado velho passando na TV e conhecer todas as piadas. Um dia voltei do supermercado com uma cera pra tacos que estava em promoção. Mano, o piso da minha casa é de azulejo. Eu tava pensando na casa dela. Quando vi já tinha comprado. Pra que desperdiçar? Fiquei meio assim, mas no fim decidi levar pra casa dela. Ela só chegava da faculdade depois das onze e eu saia do escritório de RP às seis, que não era muito longe da Barra Funda. Passei um bom pano no chão da sala e do quarto, dobrei as roupas do varal e depois cochilei um pouco no quarto, abraçado no travesseiro.

Ah, eu nunca fiz nada demais. Tirava cochilos, via futebol nos canais que eu não tinha em casa. Lá era mais silencioso, o sofá era grande e, de quebra, era como ter as novidades da vida dela sem ter aquela coisa esquisita de ficar olhando foto dela no Facebook. Às vezes aparecia uma planta, uma roupa nova, um pôster. Às vezes eu via um absorvente no lixo e fica aliviado, como se não fizesse meses desde a última vez que a gente trepou. Às vezes tinha uma colagem nova em que ela tava trabalhando, com um pedaço de alguma foto de viagens nossa. Um telhado da casa da praia, um cachorro. Eu ficava feliz. Quando era semana de provas, uma pilha de livro brotava na mesa da cozinha. Quando ela voltava da casa dos pais, a geladeira se enchia de marmitinhas de arroz, salada de batata, restos de churrasco. Quando chamava as amigas, a pia ficava soterrada de latas, algumas vazias, outras com bitucas de cigarro enfiadas dentro, um pouco de cinza na borda. Outras quase cheias, dava até dó de esvaziar a cerva choca na pia. Sempre achei essas amigas dela meio porcas, sei lá.

Se eu conheço a Vanda, ela nem se dava conta. Cheguei a mudar umas coisas maiores de lugar, uma luminária, tirar shampoos de dentro do boxe e colocar na pia. Por curiosidade. Pra ver se ela percebia. Uma vez deixei um vinho pra ela na geladeira, não sei se tomou, nunca encontrei copos com mancha vermelha no fundo apesar da garrafa ter sumido. A Vanda é mesmo meio doida, imagina você não prestar atenção no que acontece na própria casa. Durou uns meses mas é claro que eu não vou mais. Uma noite eu estava indo guardar umas roupas no quarto e pisei numa coisa metálica. Era uma embalagem de camisinha. Aberta. Corri pro lixo do banheiro. Tava lá, dava pra ver só a pontinha amarrada, que nem um nó de bexiga de uma festa de mau gosto. Que nojo. Ah, cara. Puta falta de respeito. Aquele dia eu não lavei nada, nem joguei fora a droga da banana que estava escurecendo e juntando mosca. Saí batendo a porta e quando cheguei em casa, baixei um daqueles aplicativos de pegar mulher.

E, olha, peguei muita mulher viu. Muita. Uma atrás da outra. Tinha uma que parecia um pouco com ela. A mesma franja, a boca marcadinha, só a roupa era mais séria, e uns anos mais velha. Eu marquei na hamburgueria que a gente ia, e admito que bebi um pouco demais, e acabei dizendo que eu morava lá na casa da Vanda. Levei a menina pra lá e nossa, a pia estava escrota, e a mina ali achando que aquela bagunça era minha. Porra, Vanda. Que vergonha. Quase bota tudo a perder, mas no fim rolou. Fomos direto pro quarto, já estava meio tarde e a Vanda podia voltar da faculdade a qualquer momento. Deu uma adrenalinazinha. Enquanto a coisa rolava eu meio que torcia pra isso acontecer, e logo me arrependia, ficava com pena do choque e da tristeza que eu conseguia imaginar na cara dela. Mas ela não apareceu. Não para em casa mesmo.

Quando acabamos, dei uma pressionada e ofereci levar a menina pra casa dela, pra gente sair dali logo, o tempo todo ouvindo barulhos e achando que era a chave na porta ou o som da Vanda subindo a escada (ela dava uns trotes curtos, subia três degraus meio correndo e dava uma paradinha, depois mais três degraus), e quando a gente tava entrando no carro, eu dei a partida antes da garota colocar o cinto porque eu juro que vi a silhueta da Vanda chegando pelo retrovisor. Na pressa, acho que a embalagem da camisinha ficou no chão.

A menina? Nada a ver. Ela me mandou umas mensagens, eu que não respondi. Não tinha futuro. Não dava pra me imaginar com ela, saca? Parecia muito com a Vanda.

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⊗*Os contos "Dois dedos molhados" e "Assombração" integram o livro Tudo Meio Horrível (Caos e Letras, 2022).

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NATHALIE LOURENÇO (São Paulo-SP, 1984) é publicitária e escritora. Pós-graduada em Formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz. Estreou em 2017 com o livro de contos Morri por educação (Ed. Oito e Meio) e, em 2021, lançou Sabor Idêntico ao Natural (Ed.Vacatussa). Seu novo livro, Tudo Meio Horrível saiu este ano pela Editora Caos & Letras. Integra o coletivo literário Discórdia. Escreve crônicas infantis na plataforma Árvore de Livros, e minicontos no Instagram @Histórias_Bermudas.