29 de junho de 2023

Comédia, conto de Danilo Brandão

Comédia

I. Depois do ato

Já fecharam. Não. Não quero ver. Deixa ele descansar, moço. Eu não sei. Oxe, como o senhor pode saber de uma coisa dessas? Como pode saber que só os pulmões foram preju dicados? Matuto do diabo. Esse aí já nasceu meio morto. Todo quebrado por dentro. Claro que sofro. Mas isso não é da sua conta. Vá chamar o médico, por favor. Todos já foram. Graças a Deus. Todos se foram.
Doutor, o que preciso fazer agora, a delegacia? Por que precisaria fazer uma coisa dessas? Assinar uns papéis. Como assim? Problema nenhum. Mas em tempos como esses. É um aperreio e tanto. Os ônibus, as pessoas. Os mé
dicos já liberaram, não é isso? Então, moço. Só os pulmões foram prejudicados. O matuto mesmo falou. Já está clara a causa da morte. Vi no celular: não é pra ficar nas ruas. Não é pra dar mole pra ele. Pra ele mesmo. Ele vai pegar. Que dia? Preciso ir pra casa. As meninas não comem há três dias. Filhos? Não. São as nossas gatas. Quer dizer, são as minhas gatas. Agora elas são minhas. Enfim. Estão em casa. Os vizinhos não podem cuidar. Não entram em casa.

Têm medo. Devem ter revirado tudo atrás de comida. Da última vez foram fundo no bueiro do quintal. Pegaram uns ratos que moscavam por lá. Foi sujo. É uma complicação. Uma complicação. Já vou indo. Vou indo. Onde está Mei
re? Não me liga há dias. Dias que não liga.

 

II. O ato

Meire ligou e disse que seu filho tinha morrido. Pe gou ele. Pegou a doença. Menino novo. Ruim de escola, mas bom filho. Mais ou menos trabalhador. Preguiçoso. A televisão ligada. Como sempre. Mal se podia pensar com todo aquele barulho. Homem dos infernos. Ela mesmo me disse. Os hospitais estavam abarrotados. Não tinha vaga. E seu filho morreu na esquina. Gritando um último suspi ro, como se tentasse tragar o resquício do cigarro aceso há muito tempo. Era sua derradeira força. A busca pelo último ar. Estranho. Esse negócio rouba o ar da gente, é? Como pode uma coisa dessa? Já vou. Está no fogo. No fogo, ho mem. Diabo. Como pode uma coisa dessa? Um homem desse. Meu Deus. Como é mesmo que Meire disse? O filho tentava ir pra casa depois de ter seu atendimento recusado. É. Era isso. Era só ter escutado o menino. Mas que diabo de hospital. A enfermeira disse que não tinha como. Que coisa mais estranha. Como um hospital pode não atender? O menino se irritou. Puxou Meire pelos braços e atraves sou a sala de atendimento com ódio. Passou pelos corredo res. Foi direto pra rua. Antes de colocar o pé na recepção,

o ar acabou. Teve sorte de andar mais alguns passos até a esquina. Caiu. Isso Meire contando, não é. Vai saber. Coisa mais esquisita. Meire não ia inventar uma história dessa. Os mortos. Eles não estão mais fazendo exames para saber a causa da morte. A morte. O que seria mais uma morte? Todos estão indo. Meire me disse mais uma coisa. Mas essa televisão não me deixa pensar. Meu Deus. Homem dos infernos. O que era mesmo? Ela não me deixa pen
sar em mais nada. É enlouquecedor. Ainda dói. Homem dos infernos. Ainda dói aquele da última vez. O tapa ain da está na minha cara. Não é nada engraçado. Desgraçado. Mas você ria. Caralho. Eles não estão mais fazendo os exa mes. As pessoas estão morrendo. As mortes no país. Não tem mais ninguém nas ruas. No fogo. A comida está no fogo. Tudo que preciso está no meu bolso. Vai, minha filha. Anda com isso. Puta que pariu, que barulho. Que merda de barulho. Que merda de homem. Que merda de vida. Essa televisão. Pega, menina. Dança. Lembro que tinha dança. A gente se conheceu durante uma dança. Isso. Puxa. Puxa. Joga na mesa. O filho de Meire era ruim na escola, mas bom menino. Já foram oito vezes. Homem dos infernos. Oito tapas no mesmo lugar. Barulho. As mortes hoje su biram ainda mais. O país já nem existe. Como podem não ter atendido com o menino dentro de um hospital. Com o menino dentro de um hospital. Manifestantes tomaram as ruas nesta quinta-feira pedindo o fim do isolamento. A volta do comércio. Cala a boca, homem. A televisão. In ferno. A vida normal. Manifestantes. Não estão mais fa-

zendo exames. As pessoas morrem, mulher. Elas morrem e eles agora nem querem mais saber a causa. Manda pra cova. Perfeito. Isso. Manda. Pega. Agora pega o outro. O outro. Estou velha. Pega o outro. Joga na mesa. Que baru
lho é esse? O jornal acabou. Ele vai levantar. Anda. Pega o prato, a colher, o feijão, o chumbinho, o apontador, raspa o chumbinho, joga o arroz, a carne. Ele vai levantar. Aponta o chumbinho, empurra ele. Joga mais pra dentro. Afun
da. Afunda no apontador com o lápis. Acabou o jornal. Lá vem ele. Um minuto. Acaba de ficar pronto. Vou tirar do fogo. Agora mesmo. Voltou. Aponta o chumbinho. Larga o lápis. Aponta. Mistura. Dá pra ele. Volta. Aponta o lápis. Aponta. Homem dos infernos. Come tudo. Você não passa de um número. Agora.
Aponta. Aponta. Aponta o lápis. Assiste a derrota do país. Minha vitória. Acalma. Eles nem estão mais fazendo os exames.
A novela já vai começar.

 

*conto inserido no livro Tempos ainda sem nome, de Danilo Brandão, publicado pela Editora Urutau.