11 de maio de 2023

BABEL

Em 1967 um terremoto matou mais de cem pessoas no Brasil.

 

Consta que Anastácia, a mulher sem destino, um folhetim de capa e espada que se passava numa ilha vulcânica, era confuso, tinha um enredo com gente demais e não ia para lugar nenhum – e a Globo, então com dois anos de idade, afastou o autor original da novela e chamou a escritora Janete Clair às pressas para dar jeito na trama, que afundava na audiência sobretudo porque o público não estava entendendo mais nada. Janete deixou a novela com apenas sete atores, praticamente uma peça de teatro – e olhe lá, tem montagem por aí com mais gente que isso – no que se tornou um dos maiores “limpas” da história da teledramaturgia brasileira. A audiência melhorou um pouco e Janete Clair se firmou como autora de telenovelas e se consagrou depois.

 

Há algumas semanas, peguei para ler um dos primeiros romances do Jorge Amado, Jubiabá, que ele publicou aos 22 anos. O livro começou tão bem, mas tão bem, que logo nas primeiras páginas já me fez querer ir correndo a um terreiro de umbanda, me aprofundar no universo amplo das religiões afro-brasileiras, o que muito me apetece. Com o passar das páginas, porém, o livro foi murchando. A história de Antônio Baldoíno, contada desde a infância, é permeada de tantos personagens com potencial, mas com um desenvolvimento tão pífio que o leitor ou leitora acaba por levar a leitura da obra adiante apenas porque a narrativa é fluida, sem maiores desafios para a mente cansada – e sonolenta – de quem o lê. O próprio Jubiabá, que dá título ao livro, mal aparece. É uma espécie de entidade etérea, eivado de mistérios, mas que também fica só no potencial. Personagens que poderiam ser interessantíssimos entram na vida do protagonista e saem sem dizer a que vieram, muitas das vezes reproduzindo o comportamento de personagens que já haviam chegado e saído também, sem ênfase no romance. Um caso clássico de romance de trezentas páginas que poderia ter cem a menos sem fazer diferença. O livro não diz a que vem porque os personagens são planos demais. Ah, mas ele tinha apenas 22 anos!, alguém poderá dizer, excusando o jovem Jorge Amado. E é verdade. E ainda que talvez eu pudesse, nem vou entrar no mérito de comparar com outras obras, da literatura brasileira ou universal, publicadas quando seus autores estavam rondando a mesma idade e são muito melhores (mas deixo o meu aceno de longe para Rachel de Queiroz e Mary Shelley, que de onde estão acenam de volta), mais bem escritos. Isso não importa verdadeiramente. O que me interessa é a falta de comunicação do livro, ou pelo menos de uma comunicação sólida, forte. É gente demais indo e vindo sem propósito aparente, estão lá apenas para povoar um livro que não precisa daquele tanto de gente, já que o jovem Jorge Amado não tinha estofo para dar a necessária dimensão humana que justificasse a presença deles.

 

Cada vez mais, e de maneira mais pungente, compreendo a importância da comunicação, ou melhor, das formas de comunicação possíveis numa época em que estamos todos absurdamente conectados e parecemos ser diariamente convidados – convidados é eufemismo, o correto é mesmo intimados – a dizer o que quer que seja. Se entramos numa rede social, a linha em branco nos pergunta no que estamos pensando – um questionamento que, feito por uma pessoa real, pode até nos fazer se sentir invadidos, mas parece que ali está tudo bem, a gente nem se dá conta, ou não se importa, com o fato de que uma pergunta-padrão de um aplicativo de rede social quer saber mais do que poderíamos estar dispostos a oferecer, fosse alguém de carne e osso a nos perguntar. 

 

No começo dos anos dois mil, enquanto assistia aula na faculdade, alguém bateu à porta da sala de aula. Era um funcionário da secretaria, informando que o esposo da professora estava ao telefone e desejava falar com ela. Ela nos deixou fazendo um exercício e foi atendê-lo. Quando retornou, uma aluna perguntou se ela por acaso não teria um telefone celular. Ela abriu a bolsa e mostrou o que, na época, parecia um paralelepípedo. Tenho, ela disse. Mas durante o meu horário de trabalho ele permanece desligado. Em casa optamos por ter apenas um carro. Ele vem me deixar, a caminho do trabalho, ele sabe onde eu estou. Almoçamos juntos, depois ele vem me pegar e vamos pra casa. Se precisar de mim, ele liga pra secretaria. Antes dessa novidade era assim que as pessoas faziam, e sempre deu certo. A gente precisa parar com essa ideia de nos tornarmos muito facilmente encontráveis, de estar disponíveis para todo mundo a qualquer tempo. Enquanto ser humano em um nível individual ou se pensarmos na gente como sociedade, isso não vai nos fazer bem. Passadas algumas décadas, quem irá dizer que ela está errada? Nunca houve um declínio tão acentuado na qualidade da saúde mental das pessoas, e este é um serviço de saúde precarizado e ao redor do qual há muito preconceito e estigmatização. E isso, em grande medida, se deve ao fato de que somos cobrados em todo lugar onde estamos presencialmente e, nos últimos anos, também de forma virtual, seja por aplicativos de mensagens ou redes sociais. As pessoas cobram curtidas, cobram que você produza conteúdo com alguma frequência, a própria rede social diminui o alcance de suas publicações caso você não as faça com a frequência que o algoritmo exige. 

 

Esses dias minha irmã esteve na cidade onde moro, para me visitar. Ela é uma das pessoas que mais amo no mundo e que, há muitos anos, mora do outro lado do planeta. Fiquei lisonjeado, mas porque existimos distantes um do outro, o amor em seu estado puro não foi suficiente. Como não convivemos, perdeu-se, com a passagem do tempo, a noção de intimidade possível. Sabemos do que ambos gostamos de forma geral, ampla, mas não sabemos os detalhes. É muito mais do que saber que eu gosto de sorvete mas não saber de quais sabores eu gosto. É não saber, por exemplo, como a correria do meu dia a dia me aflige, me traz crises de ansiedade e culpa, e o quanto isso afetou nossa convivência nos dias em que ela esteve aqui. E o pior é que, dado o espaçamento com que nos vemos, de muitos anos, esse conhecimento das vicissitudes do outro não tem lugar para onde vicejar, o que nos obriga a compartilharmos o amor possível, aquele que se faz ao longe sem perspectiva de aproximação. De nada adianta tantas ferramentas virtuais, se o toque das mãos e o abraço dos corpos não se reúne  ao amor de quem se cuida de longe.

 

Às vezes essa é a sensação, ao lidar com as muitas (im)possibilidades de comunicação. A de que estamos no mundo como pessoas que sabem que se amam, que se querem bem, mas que uma vez juntas, não sabem o que fazer desse sentimento. Penso mesmo que há uma importância num minimalismo não de quem é mesquinho com os sentimentos – qualquer que seja ele – isso não; mas talvez seja hora de nos desobrigarmos a estarmos o tempo todo atentos a tudo, com medo de nos tornarmos obsoletos aos olhos de quem nos vê. Isso não significa que não continuaremos a nos atualizar, a nos informar, é claro. Significa que num momento em quem temos cada vez mais acesso ao que ocorre em nosso entorno e fora dele numa questão de segundos, onde lemos, ouvimos e vemos conteúdo feito para propositalmente desinformar, já que o que desejam é perpetuar um viés socio-político, talvez ingerir menos sites de notícia, ouvir e ver menos informações no Whatsapp ou Telegram, compartilhar menos daquilo que nos chega e, sobretudo, voltar a valorizar mais as conversas feitas ao redor de uma mesa, ou na cama, do que as que ocorrem em grupos de aplicativos, e manter por perto aqueles que nos querem por perto, sem nos preocuparmos com “seguidores” (reparem na submissão carregada na essência dessa palavra!) ou “amigos” que você talvez nunca sequer tenha visto (e sai por aí banalizando o uso da palavra), talvez seja um caminho. Pode parecer um recomeço a paus e pedras, como preconizou Einsten sobre como seria uma quarta guerra mundial, mas é preciso recomeçar. E se é impossível rever os caminhos que fizeram com que a gente chegasse até aqui dessa maneira, pelo menos que a partir daqui a gente faça escolhas como se realmente estivéssemos preocupados com quem somos, ou com a maneira como queremos estar consigo mesmos. Com o outro. 

Com o mundo.