23 de janeiro de 2023

A poesia de Francis Kurkievicz

Francis Kurkievicz é poeta, escritor e professor, natural de Paranaguá/PR. Residiu por 20 anos em Curitiba/PR onde estudou FILOSOFIA – UFPR/2002, com especialização em Yoga – UNIBEM/2010 e MBA em Produção de RTVC, UTP/2011. Foi um dos 36 pré-selecionados ao Prêmio SESC de Literatura de 2015 na categoria Conto. Publicou, em dezembro de 2020, pela Editora Patuá, o livro de poemas B869.1 k96. Têm poemas publicados nas Revistas Acrobata, Hiedra, Mallarmatgens, Arara, Estrofe e no site escritas.org – traduções na Revista Zunái, Escamandro, Letra & Fel – artigos no Jornal Memai. Em 2022 teve seus poemas publicados nas duas maiores antologias mundiais de poesia: World Poetry Tree, organizado por Adel Khosan – Dubai/EA, e Living Anthology of Writers of the World, organizado por Margarita Al – Russia. Em Vitória desde fevereiro de 2012, ministrando oficinas de Dramaturgia, Haikai e Meditação.

 

MADRUGADA DE VERÃO

Tudo parece tranquilo nesta madrugada de verão
Neste verão de março chuvoso
Nesta noite de ruídos ainda urbanos
Neste vinte nove de setembro de dois mil e vinte dois.
A cidade dorme para amanhecer reposto.
Amanhecer e labutar pelo direito de estar no mundo
Mundo este que não lhe pertence
Pertencimento este que não lhe diz respeito.
Eu insone resisto roto e ruído
Pensando o impensável
Tingindo o intangível
Dobrando-me sobre a minha miséria intelectual
Sem força para acionar a perfuratriz
E romper a pele desta realidade noctâmbula.
Mas quem se importa se amanhã alvoreceremos agitados
Por bandeira estrangeira
Divididos e aquartelados em estado de sítio?
Mas quem se importa se o amanhã não alvorecer?
Se a madrugada úmida e quente estender
Sua escuridão ao reino tártaro?
Quem se importa se nossa carne
Ainda viva e pulsante
Alimentar cães e vermes alienados
Durante nosso sono sempre terapêutico e vazio?
A cidade dorme o mundo
E a humanidade a ansiedade que o aguarda.
Estou cativo deste ativo mental
Lamento de estar desperto e pouco fazer pelos outros.
Um galo canta no alto do Moscoso.
Um galo insone como eu.
Um galo que pensa madrugada adentro.
Estará considerando outras intervenções?

 

*

 

VERSOS PODRES

Quero escrever um poema invulgar
Versos essenciais e poderosos
Obra de gênio...!
Quero, mas a inspiração
Cede espaço para a revolta
E a revolta invoca outras raivas
Iras ocultas sobre a epiderme da indignação.
Como fazer um verso incomum
Quando um inocente
Sem crimes, sem precedentes
É delatado por traidores acuados e assustados
Pródigos em maldizeres e parcos em provas?

Que raros versos despontariam da página
Encadeados em signos e alegorias
Quando algemada está a liberdade
E encarcerada a esperança?

Que verso resiste salubre e nobre
Às ameaças de cassetetes
À inquisição de câmeras televisivas
Às manchetes de escárnio jornalístico?

Meu verso está podre hoje.
Amanhã estará mais azedo e deletério, talvez.
Quero escrever:

“Que todos feneçam no cú de Cérbero, seus conspiradores!”

Mas isso não dá elegância ao meu verbo e verso.
Alguma legitimidade, talvez.

Danoso está o ar que respiramos.
Um ar contaminado por gazes jurídicos
Carregado de partículas midiáticas
Oprimido por nitrogênios nazifascistas.
É o ar das harpias!
Ouço o ressonar de suas narinas escangalhadas.
O rufar triunfante de seus corações de alumínio.
O percutir de suas asas de colágeno e cálcio.
A era democrática chega ao seu epílogo
Logo estaremos todos
Submetidos e submergidos no lodo
De seus excrementos.

 

*

 

QUANDO A ATLÂNTIDA RESSURGIR

Atlântida passou e dela nada há
Ainda que em breve
Dê notícias e restos
Do lodo oceânico;

A Grécia

: de Apolo, Péricles e Sócrates já se foram,

Mesmo que suas ruínas
De prédios e ideias permaneçam
Firme e em pé;

Dom Pedro II e Nietzsche
Também se foram
Ainda que pelo caminho tenham se encontrado,
Num próximo retorno, quem sabe,
Entorno de nosso umbigo fétido
Breve ou eterno
Ressurjam mais dispostos;

Mas aquele velho fantasma que já tinha ido
- supomos que já findo e finito como tudo mais –
Tornou a aparecer azedo e liberal
Agora em ternos, sem farda,
Com dentes em riste
Com a fome dos insaciáveis insanos;
Mais uma vez ameaça
Põem nuvens escuras entre céu e terra
Abre abismos ainda mais infernais
Entre o sonhado e já quase realizado;

Também passará este vento tóxico
Pleno em seus enxofres
Poeirento e sufocante.
E nas areias do deserto da memória
No lodo intestinal do esquecimento
Dormirá a sua fome fascista e falaciosa,
Mas agora, para sempre.

 

*

 

OS VIZINHOS

Existem pessoas que não conseguem
Experimentar sua frustração em silêncio;
Nem possuem sabedoria
Para dissolver os ressentimentos no álcool;
Não têm eles fibra e coragem
De tolerarem a si mesmo,
E nem conseguem viver e dormir consigo mesmos;
Então, incendeiam o inferno sobre a terra,
Cospem ruídos dissonantes pelos cotovelos,
Ligam o moto-continuo dos terremotos,
Condicionam o oxigênio dos arredores
Com o metano de suas crenças;
Pobres diabos infernizados
Pelos próprios demônios,
É para vocês que existe o reino de Hades!