22 de julho de 2021

A poesia de Flávio Otávio

§

a memória da casa é a memória de todos nós
seus cubículos edículas cômodos
seus alicerces tijolos e telhas
sua alvenaria roída por heras e limos
suas esferas de fantasmas e histórias esquecidas
sua linguagem arcaica – ruínas de tempo obtuso

a casa que se levanta: suas mutilações

um céu de estrelas a cobrir seus esquecimentos


Tristesse

sobram palavras quando há pouco a dizer
talvez a loucura coubesse na roupa que deixei
no cabide
ou nem houvesse razão para sair de mim
o mundo multicolorido desfocado pela lente da
insanidade
o tempo, escusado de mim, vadia
vadia como os últimos boêmios
que saem pelas ruas, exaustos de viver
vadiam nas ruas da Penha
Vila Madalena ou qualquer canto deste mundo
em um quarto carcomido
sim, sou um desses que tentam atravessar o país
num piscar de olhos
talvez uma necessidade de fugir de mim
ou de me encontrar em qualquer esquina
onde os loucos se encontram
eis que chego à porta da Casa Verde
recebendo a chave da Cidade das Rosas
como honra ao mérito de outrem
sou assim, usurpador do trono
tenho a coroa e a coragem
sob o braço o chapéu… nas mãos?
delírios feitos de confetes e serpentinas
à espera de outros carnavais
onde os corpos se encontrem
suados, purpurinados, débeis
sim, espero a euforia que vem do claustro
a lobotomia, o choque elétrico, a surra, o coice
espero o veneno destilado nos cálices sagrados
o corpo sangrando sobre a pedra
espero o que não é para se esperar
o desespero, a sofreguidão
e, espero sempre na mais tola calmaria
aquilo que não há de vir.


Cavalos azuis

Para um quadro de Franz Marc

um poeminha atormentou meu cochilo
murmurando a meus ouvidos
que, quando velho, em minha caduquice
poderei ter cavalos azuis.

mas, o que fazer,
se já agora,
os tenho?


§

abrir as gavetas, as despensas, e não encontrar
nada que nos condene ou nos salve de nós mesmos.
um líquido qualquer a saciar nossa sede.
um naco de dúvida a sanar nossas necessidades
de alimento. este contemplamento, esta sutura
do que nos é negado.

sentar à mesa, mãos estendidas como quem
pede, jeito de quem roga misérias a um deus
inverossímil. esperar que a casa não desabe. e
que nada caia em si. que nada lhe caiba.

esperar com a convicção de quem não espera
nada da vida.

não esperar nada do céu: nem chuva nem maná
nem aviões em chamas.


Imortalizado

arrancaram minha pele viva
fizeram retalhos de meu corpo
estilhaços de minha alma
lavaram as mãos em meu sangue
derramado sobre a mesa
trituraram os meus ossos
e queimaram os meus cabelos
restam apenas as sombras
de respostas a perguntas
que nunca me fizeram
restam apenas os versos
que insistente escrevi

intacto, em uma redoma
colocaram meu coração
que palpitante pulsava
descompassadamente.

Quem desejar adquirir o livro, pode entrar em contato com o autor pelo e-mails: foferreira@gmail.com

Flávio Otávio Ferreira é poeta e operário. Nasceu em João Monlevade, Minas Gerais, em 20 de outubro de 1980. Cresceu num beco da “Rua Chicota”, na cidade de Bela Vista de Minas, onde se encontram os afetos e memórias que o acompanham pela vida. Mora em Araxá. É graduado em Letras.

Publicou os livros “Cata-ventos” (KroArt, 2005), “Itinerário Fragmentado” (Quártica Premium, 2009). Participa das coletâneas “Fórceps” (Coletivo Anfisbena, 2013) e “Assim é que dizemos” (Porospoesia, 2014).