29 de outubro de 2022

O Rio de Mateus Baldi está no limite 

Antes de acabar de vez, o Rio de Janeiro ainda vai acabar muito. Voltei para cá há não muito tempo, depois de anos vivendo longe da cidade. Esperava encontrar quase nada. O Rio acabou, muita gente me dizia. Só sobraram os problemas, e quem pode está indo embora. Quando finalmente cheguei, encontrei sim os problemas de que me falaram. Todos eles, bem à vista, e gritando bem alto. Mas encontrei também as pessoas levando os shi-tzus nas coleiras, e levando seus filhos à escola, e levando seus problemas para os copos de cerveja. Mesmo depois de tudo, as pessoas do Rio estão vivas, e povoam o livro de estreia de Mateus Baldi, crítico literário e escritor, idealizador do Resenha de Bolso.

Se engana quem espera encontrar um Rio glamourizado nos onze contos de Formigas no Paraíso (Faria e Silva, 2022). Apesar de não ser a cidade hiperviolenta e inabitável que se vê com frequência em representações recentes, o Rio de Baldi é tão conservador, cafona e infernal quanto despudorado, despojado e paradisíaco. O clichê que tanto se ouve sobre a Dublin de James Joyce ou a Manhattan de Woody Allen pode também ser dito sobre este livro: aqui, a cidade é a personagem principal, mas jamais sem motivo. Formigas é acima de tudo um livro sobre os órgãos dessa cidade: as pessoas. E essas pessoas não poderiam estar em nenhum outro lugar senão nas ruas cariocas. 

Pessoas, aliás, são o forte de Formigas. É principalmente através da voz que as personagens ganham vida. Quem conhece bem o Rio de Janeiro praticamente pode ouvir a voz dessas personagens pipocar nos ouvidos. Baldi busca simular a oralidade desbocada dos cariocas sem quase nunca soar artificial. Suas pessoas estão sempre no limite, em ponto de ebulição, mas evitam explodir. Pensam quebrar a raiva com um deboche nervoso e uma informalidade passivo-agressiva que têm como alvo, muitas vezes, a própria cidade e os hábitos de seus moradores. “Sorria, você está na Barra. Isso é um absurdo. Ninguém sorri porque está na Barra”, resmunga o homem preocupado com o sumiço do filho em Antes que o sol. “Uma ida a Penedo para ficar trepando debaixo de um cobertor felpudo num hotel-fazenda é sempre o fim do mundo”, debocha a mulher angustiada com a vida amorosa em O tigre-de-bengala.

Assim, os contos vão sempre prometendo o momento visceral, os relatos selvagens, mas acabam muitas vezes por ser encerrados subitamente, antes que a tudo saia de controle – como quase sempre é na vida. Isso pode ser visto como um defeito para alguns leitores, como se os contos não deslanchassem, mas o que importa aqui é a tensão. A violência – não a violência urbana, mas aquela das relações sociais comuns – é a todo tempo sugerida, quase nunca mostrada. Este é um livro sobre a vida particular, o que se esconde nas famílias — aquelas que parecem perfeitas e as que obviamente não têm nada no lugar. Apesar de ter majoritariamente um recorte de classe bem estabelecido e localizado em um ponto específico do mapa da cidade, Baldi põe no papel personagens diversos, de taxistas a atores de novela, de senhoras elitistas a prostitutas que não vivem no luxo. Todos dividindo o mesmo formigueiro, cada um levando nas costas os próprios traumas, neuroses e obsessões. 

Baldi é um escritor com repertório, como se espera do crítico que é. E sabe explorar esse repertório sem pedância ou referências forçadas. Se insere em uma longa tradição literária de autores que escrevem as cidades, que escrevem o Rio. Mas o que fica mais evidente é seu olhar obviamente atento, que vê tudo com humor, sem medo do pudor nos olhos dos outros, sem medo de estar no próprio tempo presente. Talvez seja verdade e o Rio não tenha mais jeito: as mudanças climáticas vão fazer a cidade submergir, como um dia imaginou, profético, Chico Buarque, e o cartão postal será totalmente engolido pelos problemas que tenta esconder atrás das pernas. Mas até lá, estamos por aqui, sendo observados pelos olhos de quem vê literatura em tudo. 

 

  • por Bruno Soares dos Santos, mestre em Literatura Comparada pela Universidade de Alberta, no Canadá, e jonalista pela Escola de Comunicação da UFRJ.