7 de outubro de 2022

A vergonha, de Annie Ernaux

Há uma França na obra de Annie Ernaux, ao mesmo tempo, particular, inscrita nos acontecimentos de sua vida, e; uma outra pública, de todos, reconhecível em seus modos, preconceitos, contradições. Em sua prosa, Ernaux revela que é possível que algo pessoal, tão íntimo, seja também político.

A vergonha, mais recente lançamento da Prêmio Nobel de Literatura de 2022 no Brasil, reúne todos os elementos presentes nas obras que o antecederam, porém aprofunda recortes e distinções de classes socioeconômicas, conduzindo o leitor não a uma crítica estéril e impessoal (daquelas que fazem parecer um penduricalho no texto, algo desatrelado da narrativa, que funciona como pretexto para a crítica), mas tomando para si como parte siginificativa do lugar que ocupa e que busca compreender.

Ernaux trabalha bem esse deslocamento da filha de operários que se distancia de seu mundo, de sua família ao adquirir uma educação formal. O capital cultural a distingue dos pais e vizinhos. Essa perpectiva (bourdieuriana?) se faz presente noutros livros da autora (como em O lugar e O acontecimento).

Em termos práticos, a impede de partilhar momentos de dor e dificuldade, deslocando-a a um lugar externo, de observadora de um mundo tão seu e tão outro. Eis o ponto de vista da narradora: entre o passado, o remoto ano de 1952, quando Ernaux tinha apenas 12 anos e testemunha a tentativa de feminicído do pai, e; o presente, quando essa mulher madura reflete sobre o sentimento de vergonha que sentiu.

“Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde.”

É a partir desse acontecimento que Ernaux reconstrói minuciosamente o seu lugar (físico e metafórico).

Com rigor antropológico, afinal declara que gostaria de ser etnóloga de si mesmo, demarca limites, muros, fronteiras e zonas de perigo e segurança, observando e descrevendo hábitos e fatos sociais. Com atenção, descreve cada centímetro de existência, revelando as inadequações que a conduzem a sentimentos de culpa, medo e vergonha.

O texto tem tons rudimentar e exploratório. Em certas passagens parece abandonar por completo o evento desencadeador da narrativa para se concentrar nesses aspectos socioantropológicos, a exemplo dos atinentes a pesquisa realizada em arquivos, com o intuito de reconstruir os eventos daqueles domingo de junho de 1952. Ernaux tenta situar no mundo em derredor a tentativa de feminicído ocorrida na cozinha de sua casa.

Se por um lado parece distanciar-se, de outro aponta para essa tentativa voraz de distanciar toda carga emocional e traumática, além do peso produzido pelo silêncio optado pela família, que nunca mais falou daquela tarde.

Um movimento implica o outro, a tentativa de distanciamento pessoal e afetivo é que conduz ao mergulho no entorno. Aqui Ernaux revela originalidade, fugindo de retratar o cotidiano, o atenado súbito e furioso de seu pai à vida de sua mãe sob outras perspectivas. Nesse sentido, não recorre a dor, ao sofrimento, trazendo um relato íntimo sob uma luz psicanalítica, mas etnográfico e, por conseguinte, não um relato de si, mas de outro.

O texto desnudo, ou seja, sem firulas, direto e objetivo, consegue dar a narrativa consistência, concisão e precisão. Soa simples, sem deixar entrever a sofisticação e o jogo que maneja bem. Por outro lado, aparece de modo mais rudimentar que em outros de seus livros (v. O acontecimento). A brevidade de seu relato também é acertada, pois num só golpe prende o leitor, desconcertando-o, quer pela sensação de que precisa reler para encontrar detalhes não percebido, quer pela capacidade de fazer refletir sobre as pessoas envolvidas no relato pessoal compreendendo-as como partes integrantes de um sistema, de uma estrutura social.

Em A vergonha, Ernaux confirma a consistência de seu projeto literário, no qual o íntimo e pessoal é também público e político.

Longa vida a Annie Ernaux!