25 de fevereiro de 2022

Memórias de um urso-polar, de Yoko Tawada

Penso que o modo mais adequado de começar uma resenha de Memórias de um urso-polar (Todavia, 2019) seja focando na escrita de Yoko Tawada, intimamente relacionada com o seu próprio não lugar.

Uma escritora entre o Oriente e o Ocidente

A autora japonesa vive, desde 1982, na Alemanha. Esse estranhamento entre culturas e línguas — ela escreve em japonês e alemão — é perceptível no modo como escreve e em suas personagens (ao menos, é o que pude deduzir neste segundo contato com sua obra. O primeiro foi com The Bridegroom Was a Dog, ainda sem tradução). O estranhamento destaca-se como um elemento frequente no modo como sua escrita naturaliza o absurdo, provocando uma simbiose entre o enredo e o modo de narrar. Não à toa as comparações a Kafka e a frequente associação às fábulas. Entretanto, apesar da simplicidade, há um aceno à literatura russa.

Sobre o romance

Quanto ao romance, três gerações de usos polares terão suas memórias escritas. A necessidade da palavra como meio de resgatar a si mesmo, de construir um mapa para as suas origens é o que permeia e tematiza as três partes do livro.

Há um Polo Norte imaginário, que congrega e reúne os três ursos, apropriado de modos diferentes e em diferentes perspectivas: Mama-lia, a matriarca, o Polo Norte se refere à busca pela identidade, corporificando seus anseios e desejos; em Toska, a filha, adquire a dimensão onírica do encontro, e; com Knut, o filhote abandonado, encontra-se distante e paira enquanto ideia e lugar ameaçado pelo aquecimento global, cuja origem o ursinho questiona. Contudo, o Polo Norte como ponto fixo também sinaliza para o deslocamento das personagens. Esse deslocamento diz respeito a nós, Homo Sapiens, e nosso deslocamento pelo mundo. Nesse sentido, o romance claramente chama a atenção a questão dos refugiados.

Na primeira parte, a ursa-polar narra a sua vida. Não sabemos seu nome, mas vamos sendo apresentado a sua história (Mama-lia é um nome atribuído a ela por Úrsula em uma de suas viagens oníricas ao Polo Norte, na segunda parte do livro). Ela ironiza os clichês do escritor perturbado pelo ato da escrita e os modos inescrupulosos do mercado editorial.

Escrever: um ato estranho. Quando olhei para a frase que havia acabado de colocar no papel, senti vertigem. Onde estou agora? Entrei em minha história e desapareci nela. Para voltar, afastei meu olhar do manuscrito e deixei-o focar na janela até que eu finalmente estivesse de volta ao aqui e agora. Mas onde é o aqui? E quando é o agora?

A escrita revela-se como ato capaz de transpor os limites do tempo-espaço, conduzindo quem lê e quem escreve para outros lugares e épocas. Essa viagem temporal causa vertigem. Quase uma antecipação das sensações que o leitor experimenta à medida em que avança. Ora, não é todo dia que uma ursa -polar contextualiza o regime soviético, encarnando as perseguições, limitações e censuras. Ela tem de se refugiar na Alemanha Ocidental, numa fuga clandestina para poder continuar a escrever sua biografia. Além disso, as outras partes vão completando o cenário de unificação das Alemanhas e o pós-queda do Muro de Berlim.

Há aspectos importantes que permeiam e conectam o romance. Um, a ursa-polar diz que toda conferência é um circo. Brinca com o modo como homens reúnem-se em torno de temas importantes, mas tudo para mostrar um bom espetáculo ou apenas declarar que se importam. O circo é um elemento contínuo no livro. Na primeira parte, aparece no modo como os homens discutem assuntos relevantes, mas pouco agem. Em pleno auge do comunismo soviético, reunidos em uma conferência esboçam preocupação com o futuro do meio ambiente:

A bicicleta é sem dúvida a maior invenção da história da civilização. É a flor do picadeiro, o herói de toda a política ecológica. No futuro próximo, todas as grandes cidades serão dominadas por bicicletas. Não somente isso: todo lar terá seu próprio gerador, que estará conectado a uma bicicleta. Então poderemos nos exercitar e produzir energia ao mesmo tempo. Poderemos também simplesmente montar na bicicleta para visitar nossos amigos, em vez de ligar ou enviar um e-mail. Quando usaremos a bicicleta de forma multidimensional, vários aparelhos eletrônicos vão se tornar supérfluos.

Na terceira parte, há uma conexão com esse momento inicial, ao fazer de Knut um símbolo de alerta ao aquecimento global, outra ação inócua mais voltada a espetacularização que a uma real solução. Aliás, o modo como a vida de Knut é midiatizada também aduz a ideia de circo. A segunda parte, que narra a vida de Toska, passa-se num circo.

Sobre deslocamentos

Dois, o deslocamento dos personagens. Mama-lia, com frequência, questiona seu lugar no mundo. Ao refletir sobre suas origens, apega-se ao Polo Norte como referência, a origem de seus antepassados. Ela anseia por encontrar um lugar de pertencimento, em que entenda e possa tomar por seu. Há a necessidade de retorno, de uma pátria. Ela nasceu na Rússia, migra para a Alemanha Oriental e foge para a Alemanha Ocidental e de lá migra para o Canadá. Sua chegada a Alemanha Ocidental revela prazeres proibidos na parte Oriental, mas logo revela uma dinâmica de exploração semelhante. As boas intenções são sempre maculadas por péssimos interesses. Ora, uma ursa-polar escritora de sucesso, mesmo não sendo tão boa, interessa por motivos semelhantes ao lado Oriental e Ocidental. O Canadá desenha-se para Mama-lia como um refúgio, como um lugar democrático e de proximidade com suas origens no Polo Norte.

Toska nasce no Canadá, mas cresce na Alemanha Oriental, para onde retornaram seus pais. Rejeitada em um show, acaba vindo parar em um circo. Lá conhece Úrsula, a pequena domadora de animais, com quem estabelece uma conexão mágica, as duas são transportadas ao Polo Norte.

Nesse espaço onírico compartilham memórias e a domadora, comprometida em narrar a biografia de Toska, escrevendo em pequenos papeis que encontra pelo circo, conta mais sobre si que sobre a ursa. Há um encontro entre elas. Úrsula, também deslocada, percebe ter mais semelhanças com Toska que com a própria espécie.

O clima de transição permeia toda a parte. Elas estão planejando um número para apresentar. O muro que separava a Alemanha começa a rachar. Há sinais e sintomas de desgaste por todos os lados. O casamento entre Úrsula e Markus, as contínuas crises financeiras do circo, as inconveniências da sindicalização e a emergência de direitos e demandas dos demais ursos-polares trabalhando no circo. Temas delicados vão se delineando a cada viagem ao Polo Norte. Toska e Úrsula começam a compartilhar memórias, sentimentos e traumas. Criam empatia e amor uma pela outra. Envelhecem juntas, compartilhando na língua a doçura da cumplicidade e amizade que devotam uma a outra.

A história de Knut

Knut nasce, vive e morre em Berlim. Nunca saiu do zoológico. Foi rejeitado por sua mãe. Foi criado por Matthias, sua mãe humana, tudo sob os olhares da imprensa do mundo inteiro. Knut naturaliza os flashs, os holofotes, mesmo não sendo artista como a avó ou a mãe, a ele basta a fofura.

A excepcionalidade de sua história, rejeitado pela mãe e criado por um humano, faz com que se torne rapidamente no símbolo de uma tragédia, e toda tragédia deve ser sagazmente politizada para ganhar sentido e razão. O zoológico de Berlim apressa-se em associá-lo ao aquecimento global e monetiza suas aparições e existência em pelúcias, chaveiros, canecas etc. Para Knut, há apenas o desejo de conhecer o “lá fora”, seu mundo resume-se a pequena sala onde vive com Matthias e é visitado por Christian, o veterinário, com quem tem uma relação ambígua. Em seus passeios pelo zoológico, percebe o quão desencaixado se encontra.

Knut, quanto mais sabe de si e percebe onde está inserido, mas compreende que não pertence a nada, nem a ninguém. Está distante demais de suas origens, desconhece a própria linhagem, toda a fonte de afeto é oriunda de estranhos, que estão ali apenas cumprindo uma função, o que fica claro quando Matthias termina o seu trabalho e nunca mais é visto. O pequeno urso sente a sua ausência e, mesmo entendendo a situação, não consegue desassociar que o afeto e cuidado recebido não tinha nada de espontâneo.

A voz do adulto mentia. Eu não vinha do Polo Norte, li mais uma vez no jornal que eu nasci em Berlim. Também li que minha mãe nasceu no Canadá e cresceu na Alemanha Oriental. Mesmo assim, sempre diziam que eu vinha do Polo Norte — provavelmente devido a meu pelo branco como a neve.

Knut ainda incorpora a angústia de querer ser aceito. Ele tenta ganhar o amor de Matthias e do público. Em seus passeios pelo zoológico sujava-se para ficar mais parecido com os demais ursos, que sempre o rejeitam. Essa ideia e necessidade de semelhança escancara-se diante do recinto dos lobos, quando o alfa mostra sua família de iguais, de semelhantes, em contraste com a família multiétnica de Knut — um filho urso e uma mãe homo sapiens macho.

Humanos e ursos

Três, a presença de pessoas com os ursos. Há sempre pessoas agindo, falando, colocando-se como cuidadores das três gerações de urso-polares. Ivan, os editores inescrupulosos com Mama-lia; Úrsula, colocando-se como biógrafa de Toska. Matthias cuidando de Knut, o diretor do zoológico, o veterinário.

Todos assumem o protagonismo das vidas dos ursos-polares, como se não fossem capazes de falar por si. A segunda parte é a mais flagrante, pois Úrsula assume a obrigação de contar a história de Toska e acaba falando mais de si que da ursa. Em dado momento, Toska assume a narrativa.

Isso fica claro em Mama-lia, quando seus editores acreditam saber o que é melhor e passam a manipulá-la, inclusive forçando-a a escrever em russo para que possam traduzir para o alemão, modificando quando e onde julgarem necessário e, por conseguinte, distorcendo o que disse.

Por sua vez, Knut depara-se com sua história sendo escrito nos jornais e televisão ao sabor de seus cuidadores, dos diretores do zoológico, do público visitante, dos jornalistas.

Uma interpretação possível

Tawada constrói um absurdo retrato da realidade de imigrantes, refugiados e deslocados, atentando ao silenciamento de suas vozes, a apropriação política e cultural de suas narrativas, o estigma de sua desumanização e redução à condição de coisa, de algo nomeado, a uma apropriação sintática e semântica, que os projeta mais como símbolos de uma tragédia que como protagonistas de suas histórias.